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OS SENTIDOS DO LULISMO

 

Público este documento, para mim um dos mais importantes no que tange a definição do Lulismo. Se antes das Eleições 2022, este documento, se fosse lido, o resultado final da mesma  seria completamente outro. O Lulismo é um cancêr que penetrou na política brasileira, e agora, que retornaram ao poder, vai ser derramado muito sangue para tirá-los de lá. Não foram eleitos pelo povo, mas sim por manobras políticos judiciárias sob o comando de Alexandre - Xandão - de Moraes. (grifo meu) A seguir este documento na integra.

Fonte: 

https://docs.google.com/document/d/1pdOmxcZNTmQmBRg6tAk26GVD-R3rh2hPS-e5Ez9xSUc/edit

Sumário 

Introdução: Alguns temas da questão setentrional 

  1. Raízes sociais e ideológicas do lulismo 2. A segunda alma do Partido dos Trabalhadores 3. O sonho rooseveltiano do segundo mandato 4. Será o lulismo um reformismo fraco? 

Apêndice: Tabelas e quadros citados no texto Posfácio: No meio do caminho tinha uma pedra Bibliografia

Introdução 

Alguns temas da questão setentrional 

A!rmamos que o camponês meridional está ligado ao grande proprietário rural por meio do intelectual. Este tipo de organização é o mais difundido em todo o Mezzogiorno e na Sicília. Forma um monstruoso bloco agrário que no seu conjunto funciona como intermediário e guardião do capitalismo setentrional e dos grandes bancos. Seu único objetivo é conservar o status quo. 

Antonio Gramsci, Alguns temas da questão meridional 

O lulismo existe sob o signo da contradição. Conservação e mudança, reprodução e superação, decepção e esperança num mesmo movimento. É o caráter ambíguo do fenômeno que torna difícil a sua interpretação. No entanto, é preciso arriscar os sentidos, as resultantes das forças em jogo, se desejamos avançar a compreensão do período. Faço a minha aposta principal em forma de pergunta, pois o processo ainda está em curso: a inesperada trajetória do lulismo incidirá sobre contradições centrais do capitalismo brasileiro, abrindo caminho para colocá-las em patamar superior? 

Para tentar uma resposta, é necessário refazer os passos históricos e descer aos detalhes materiais e ideológicos que os sustentaram. Na aparência, tendo vencido a eleição de 2002 envolto ainda por restos da aura do movimento operário dos anos 1980, o ex-metalúrgico apenas manteve a ordem neoliberal estabelecida nos mandatos de Collor e fhc. Decidido a evitar o confronto com o capital, Lula adotou política econômica conservadora. Nos dois primeiros meses de 2003, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco

Central (bc) aumentou os juros de 25% para 26,5%. 1 De modo a pagar a dívida contraída com essa elevação, o Executivo subiu a meta de superávit primário de 3,75% em 2002,2 já considerada alta,3 para 4,25% do pib (Produto Interno Bruto) e anunciou em fevereiro enorme corte, de 14,3 bilhões de reais, no orçamento público, quase 1% do produto estimado para aquele ano. 4 O poder de compra do salário mínimo foi praticamente congelado em 2003 e 2004.5 Para completar o pacote, em 30 de abril de 2003 o presidente desceu a rampa do Planalto à frente de extensa comitiva para entregar pessoalmente ao Congresso projeto com reforma conservadora da Previdência Social. Entre outras coisas, a pec (Proposta de Emenda à Constituição) 40 acabava com a aposentadoria integral dos futuros servidores públicos. 

O efeito das decisões foi o esperado. O crescimento caiu de 2,7% nos últimos doze meses de Fernando Henrique Cardoso para 1,3% do pib nos primeiros doze do pt. O desemprego aumentou, passando de 10,5% no derradeiro dezembro tucano para 10,9% no primeiro dezembro petista (2003).6 A renda média do trabalhador caiu 12,3%. 7 As instituições financeiras tiveram um resultado 6,3% maior.8 Compreende-se, portanto, que na conclusão de O ornitorrinco, datada de julho de 2003, o sociólogo Francisco de Oliveira tenha a!rmado que o Brasil era “uma acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão”.9 

Entretanto, passados oito anos, o cenário era outro. Em dezembro de 2010 os juros tinham caído para 10,75% ao ano, com taxa real de 4,5%.10 O superávit primário fora reduzido para 2,8% do pib e, “descontando efeitos contábeis”, para 1,2%. 11 O salário mínimo, aumentado em 6% acima da in"ação naquele ano, totalizava 50% de acréscimo, além dos reajustes in"acionários, entre 2003 e 2010. Cerca de 12 milhões de famílias de baixíssima renda recebiam um auxílio entre 22 e duzentos reais por mês do Programa Bolsa Família (pbf).12 O crédito havia se expandido de 25% para 45% do pib,13 permitindo o aumento do padrão de consumo dos estratos

menos favorecidos, em particular mediante o crédito consignado. As consequências dessas medidas, voltadas para reduzir a pobreza, ativando o mercado interno, foram igualmente lógicas. O crescimento do pib, em 2010, pulou para 7,5%. O desemprego, em dezembro, havia caído para 5,3%, taxa considerada pelos economistas próxima ao pleno emprego. O índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, foi de 0,5886 em 2002 para 0,5304 em 2010.14 Entrevistada em novembro de 2010, a economista de origem portuguesa Maria da Conceição Tavares a!rmava: “Eu estou lutando pela igualdade desde que aqui cheguei [1954]. E só agora é que eu acho que estamos no rumo certo”.15 Um ano antes, Conceição assinalava que o governo Lula estava “tocando três coisas importantes: crescimento, distribuição de renda e incorporação social”.16 

O que teria acontecido nos dois quadriênios em que Lula orientou o Brasil? Con!rmou-se o truncamento da acumulação e a desigualdade “sem remissão”, previstos por Oliveira, ou se entrou em fase de desenvolvimento com distribuição de renda, observada por Tavares? O país teria dado seguimento à vocação conservadora, que afogara, no passado, as possibilidades de desenvolvimento democrático, ou estariam certas as avaliações de que a aceleração do crescimento e a redução da desigualdade inauguravam etapa distinta? E, caso estivessem corretas as perspectivas otimistas, como teria sido possível destravar a economia e reduzir a iniquidade sem radicalização política, numa transição quase imperceptível do viés supostamente neoliberal do primeiro mandato para o reformismo do segundo? 

Este livro não tem a pretensão de dar respostas de!nitivas a essas perguntas, mas procura oferecer um esquema interpretativo com base no qual elas podem ser equacionadas. Em resumo, o esquema proposto tem o seguinte roteiro. Teria havido, a partir de 2003, uma orientação que permitiu, contando com a mudança da conjuntura econômica internacional, a adoção de políticas para reduzir a pobreza — com destaque para o combate à miséria

— e para a ativação do mercado interno, sem confronto com o capital . Isso teria produzido, em associação com a crise do “mensalão”, 17 um realinhamento eleitoral que se cristaliza em 2006, surgindo o lulismo. O aparecimento de uma base lulista, por sua vez, proporcionou ao presidente maior margem de manobra no segundo mandato, possibilitando acelerar a implantação do modelo “diminuição da pobreza com manutenção da ordem” 

esboçado no primeiro quadriênio. 

A expressão “realinhamento eleitoral” foi elaborada nos Estados Unidos para designar a mudança de clivagens fundamentais do eleitorado, que de!nem um ciclo político longo. Apesar de o conceito de realinhamento ser objeto de extenso debate na ciência política,18 interessa-me nele apenas a ideia de que certas conversões de blocos de eleitores são capazes de determinar uma agenda de longo prazo, da qual nem mesmo a oposição ao governo consegue escapar. Por isso, a meu ver, 2002 pode ser o marco inicial de fase prolongada no Brasil, como aconteceu nos eua com a ascensão de Franklin Delano Roosevelt. Em 1932, nos eua, assim como em 2002 no Brasil, numa típica eleição de alternância, forma-se nova maioria. Em 2006, em pleito de continuidade, há relevantes trocas de posição social no interior da coalizão majoritária: em função das opções governamentais tomadas no primeiro mandato de Lula, a classe média se afasta e contingentes pobres ocupam o seu lugar. Isso quer dizer que, embora o processo de mudança tenha começado em 2002, a eleição decisiva do ponto de vista das classes, na qual o subproletariado adere em bloco a Lula e a classe média ao psdb, é a de 2006. 

Na realidade, conforme fui advertido nos debates em torno da tese do realinhamento, é possível que ele tenha começado antes, com a lenta penetração do pt em camadas mais pobres e no Nordeste 19 desde 1989, enquanto o psdb vinha consolidando desde o seu próprio surgimento, em 1988, a condição de partido de classe média. Isso, aliás, seria compatível com o tipo de realinhamento que V.O. Key, Jr. chama de “secular”. 20 Conforme explica Antonio Lavareda, no realinhamento secular as “transformações

podem decorrer [...]de um processo bem mais discreto de acúmulo de modi!cações de longo prazo, onde uma extensa sequência de pleitos gradativamente corpori!ca o deslocamento de lealdades, fortalecendo um partido ou grupo de partidos em detrimento de outro(s)”.21 

Distinguir com precisão o tipo de realinhamento (crítico ou secular) em curso, bem como o papel relativo nele jogado pelas eleições de 2002 e 2006, além das anteriores, demandaria pesquisas especí!cas que excedem os propósitos deste trabalho e espero venham a mobilizar outros cientistas políticos. O meu objetivo era chamar a atenção para as importantes mudanças que se divisavam nos dados relativos à eleição de 2006, alterações capazes de “de!nir um novo tipo de política, um novo conjunto de clivagens, que pode, então, durar por décadas”. 22 No caso brasileiro, a agenda desse possível realinhamento é, a meu ver, a redução da pobreza. Note-se que, durante a vigência do realinhamento, pode haver troca de partidos no poder, como sucedeu em 1952 e 1956 com a vitória republicana nos Estados Unidos, seguida da volta do Partido Democrata à Presidência em 1960 e 1964, sem solução de continuidade em relação aos grandes objetivos nacionais estabelecidos na década de 1930, até que sobreviesse outro realinhamento, capaz de mudar a fase da política. 

Em suma, foi em 2006 que ocorreu o duplo deslocamento de classe que caracteriza o realinhamento brasileiro e estabeleceu a separação política entre ricos e pobres, a qual tem força su!ciente para durar por muito tempo. O lulismo, que emerge junto com o realinhamento, é, do meu ponto de vista, o encontro de uma liderança, a de Lula, com uma fração de classe, o subproletariado, por meio do programa cujos pontos principais foram delineados entre 2003 e 2005: combater a pobreza, sobretudo onde ela é mais excruciante tanto social quanto regionalmente, por meio da ativação do mercado interno, melhorando o padrão de consumo da metade mais pobre da sociedade, que se concentra no Norte e Nordeste do país, sem confrontar os interesses do capital. Ao mesmo tempo, também decorre do realinhamento o

antilulismo que se concentra no psdb e afasta a classe média de Lula e do pt, criando-se uma tensão social que desmente, como veremos, a hipótese de despolarização da política brasileira pós-ascensão de Lula. 

Foram as opções práticas do primeiro mandato, as quais precederam a crise do “mensalão” (2005) e com ela conviveram, mais do que qualquer programa explícito, que cristalizaram o realinhamento e !zeram surgir o lulismo. O pivô do lulismo foi de uma parte a relação estabelecida por Lula com os mais pobres, os quais, bene!ciados por um conjunto de políticas voltadas para melhorar as suas condições de vida, retribuíram na forma de apoio maciço e, em algumas regiões, fervoroso da eleição de 2006 em diante. Paralelamente, o “mensalão” catalisou o afastamento da classe média, invertendo a fórmula de 1989, quando Lula foi derrotado exatamente pelos mais pobres, que tinham votado em Collor. 

O lulismo, por sua vez, alterou a base social do pt e favoreceu, em particular no segundo mandato, a aceleração do crescimento econômico com diminuição da desigualdade, sobretudo mediante a integração do subproletariado à condição proletária via emprego formal. No plano ideológico, isso trouxe, outra vez, à tona a gramática varguista, que opunha o “povo” ao “antipovo”. Não é difícil perceber, também, por que se repõem, no 

esquema interpretativo sugerido, alguns temas caros à tradição da ciência social brasileira. Impossibilitado de fazer, por ora, a necessária revisão da bibliogra!a pertinente, permito-me citar, de passagem, dois autores canônicos, apenas para ilustrar a volta de assuntos recorrentes. Para Celso Furtado e Caio Prado Jr., as virtualidades e empecilhos que tinha a nação para romper o círculo vicioso do atraso estavam vinculados à existência da massa de miseráveis no país. Vale a pena transcrever trecho de Caio Prado: 

[...] a herança colonial brasileira ainda faz sentir, no essencial, todos ou pelo menos seus principais efeitos. Constituímos ainda, numa perspectiva ampla e geral [...], um aglomerado humano heterogêneo e inorgânico, sem estruturação econômica adequada, e em que as atividades produtivas

de grande signi!cação e expressão não se acham devidamente entrosadas com as necessidades próprias da massa da população. E como consequência desse estado de coisas [...] vai a economia brasileira incidir no círculo vicioso a que já nos referimos: os baixos padrões e nível de vida da grande massa da população brasileira não dão margem para atividades produtivas em proporções su!cientes para absorverem a força de trabalho disponível, e assegurarem com isso ocupação e recursos adequados àquela população.23 [grifos meus] 

Deve-se recordar que o livro de Prado Jr. foi escrito depois da interrupção abrupta do percurso inaugurado pela Revolução de 1930, o qual, do seu jeito, atacara as principais contradições nacionais. Lembra Celso Furtado: “O modelo de industrialização substitutiva de importações estava longe de haver esgotado suas possibilidades como motor de crescimento”. 24 Em outras palavras, o golpe de 1964 interrompeu o processo antes que a construção iniciada por Vargas se completasse. 

Aspecto interessante da contradição brasileira é que a “grande massa” empobrecida abria e fechava simultaneamente as perspectivas de desenvolvimento autônomo do país. Abria, pois se tratava de mercado interno de que raros países dispunham; mas fechava, uma vez que o padrão de consumo era tão baixo que impedia a realização daquele potencial. A miséria 

anulava a possibilidade de surgir um setor industrial voltado para o mercado interno. Sem ter emprego, a massa miserável tornava-se uma espécie de “sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente”. 25 Seria necessário elevar as condições de existência das camadas mais pobres, superando a “situação de miserabilidade da grande massa da população do país, que deriva em última instância da natureza de nossa formação histórica”, 

para iniciar um círculo virtuoso, pensava Caio Prado.26 Ao fazê-lo, o mercado interno ampliado estimularia a criação de investimentos e empregos, rompendo finalmente o círculo vicioso anterior. 

Apesar do quase meio século transcorrido desde a re"exão de Prado, e das expressivas transformações pelas quais passaram o Brasil e o mundo, a contradição fundamental, quando Lula tomou posse, em 1o de janeiro de

2003, continuava de pé. Uma série de relevantes contribuições intelectuais da década de 1970 procurou dar conta de como e por que a sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente se reproduzia, não obstante a retomada da industrialização pela ditadura militar, a partir de 1967, no chamado “milagre econômico”. O que se via naquela época era o paradoxo da expansão do setor dinâmico com o aumento da desigualdade , atestado pela piora na distribuição da renda. Como era possível que, mesmo ativando o mercado interno, como indicava Paul Singer, 27 a economia brasileira assistisse ao contínuo afastamento “entre a cúpula (o ‘setor capitalista’) e a base da pirâmide (o ‘setor subdesenvolvido’)”, nas palavras de Maria da Conceição 

Tavares?28 

Francisco de Oliveira sugeriu que, por trás da aparente dualidade entre um sistema dinâmico e outro atrasado, na realidade haveria uma integração de ambos, em detrimento dos pobres. O aumento da exploração, re"etido na menor renda dos pobres, canalizaria riqueza para o alto, permitindo aumentar o su!ciente o consumo dos ricos para sustentar a expansão do mercado interno, sem precisar diminuir a pobreza e a desigualdade.29 A grande massa empobrecida estaria sendo absorvida pelo setor de serviços informal, por assim dizer, lavando os carros que a próspera indústria automobilística vendia para a classe média, numa das vívidas imagens de Oliveira. “Esses tipos de serviços, longe de serem excrescência e apenas depósito do ‘exército industrial de reserva’, são adequados para o processo de acumulação global e da expansão capitalista e, por seu lado, reforçam a tendência à concentração da renda.”30 

Em 1981, Paul Singer percebeu que a sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente constituía, na realidade, fração de classe, à qual denominou subproletariado, 31 e logrou quanti!cá-la, concluindo tratar se de nada menos que 48% da população economicamente ativa (pea), contra apenas 28% de proletários (dados de 1976). Estava ali a chave para entender por que o processo político brasileiro não pode ser pensado sem se levar em

consideração o elemento subproletário. A!nal, apresentando-se na cena política como massa, o subproletariado, por seu tamanho, in"ui decisivamente na luta de classes. 

O !m do “milagre”, a crise da dívida externa e a introdução do receituário neoliberal, que marcaram sucessivamente as décadas de 1980 e 1990, repuseram com vigor o problema da sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente. Primeiro, a estagnação da economia e, depois, o combate à in"ação por meio das importações produziram explosão de desemprego, jogando parcela do proletariado formado na época do milagre de volta à precariedade do subproletariado, além de segmentos do subproletariado no lumpemproletariado, 32 o que favoreceu a constituição do crime organizado nas zonas metropolitanas. Em 1999, Celso Furtado escrevia: 

Nosso país se singulariza por dispor de considerável potencial de solos aráveis não aproveitados, fontes de energia e mão de obra subutilizadas, elementos que di!cilmente se encontram reunidos em outras partes do planeta. Por outro lado, abriga dezenas de milhões de pessoas subnutridas e mesmo famintas [...]. O cerne da questão é de!nir que modelo de desenvolvimento vai se propor ao Brasil para os próximos anos. É fundamental solucionar o problema da criação de empregos.33 

A singularidade das classes no Brasil consiste no peso do subproletariado, cuja origem se deve procurar na escravidão, que ao longo do século xx não consegue incorporar-se à condição proletária, reproduzindo massa miserável permanente e regionalmente concentrada. O Norte e o Nordeste têm índices de pobreza bem maiores que os do Sul e do Sudeste. O populoso Nordeste, em particular, é o principal irradiador de imigrantes para as regiões mais prósperas. Por isso, entendo que, ao tocar na questão da miséria, dinamizando, sobretudo, a economia nordestina, o lulismo mexe com a nossa “questão 

setentrional”: o estranho arranjo político em que os excluídos sustentavam a exclusão. 

O lulismo partiu de grau tão elevado de miséria e desigualdade, em país cujo mercado interno potencial é expressivo, que as mudanças estruturais

introduzidas, embora tênues em face das expectativas radicais, tiveram efeito poderoso, especialmente quando vistas da perspectiva dos que foram bene!ciados por elas: o próprio subproletariado. A conjuntura econômica mundial favorável entre 2003 e 2008, não só por apresentar um ciclo de expansão capitalista como por envolver um boom de commodities, ajudou a produzir o lulismo. No entanto, foram as decisões do primeiro mandato, intensi!cadas no segundo, que canalizaram o vento a favor da economia internacional para a redução da pobreza e a ativação do mercado interno. Lula aproveitou a onda de expansão mundial e optou por caminho intermediário ao neoliberalismo da década anterior — que tinha agravado para próximo do insuportável a contradição fundamental brasileira — e ao reformismo forte que fora o programa do pt até as vésperas da campanha de 2002. O subproletariado, reconhecendo na invenção lulista a plataforma com que sempre sonhara — um Estado capaz de ajudar os mais pobres sem confrontar a ordem —, deu-lhe suporte para avançar, acelerando o crescimento com redução da desigualdade no segundo mandato, e, assim, garantindo a vitória de Dilma em 2010 e a continuidade do projeto ao menos até 2014. 

Mas, se está claro um dos possíveis sentidos do lulismo, cabe apontar o tipo de contradição que o acompanharia: ao promover um reformismo su!cientemente fraco para desestimular con"itos, ele estende no tempo a redução da tremenda desigualdade nacional, a qual decai de modo muito lento diante do seu tamanho, em compasso típico dos andamentos dilatados da história brasileira (escravatura no Império, política oligárquica na República, coronelismo na modernização pós-1930). 

Eis, em resumo, o esquema interpretativo que pretendo desenvolver nas páginas a seguir. Antes de deixar o leitor julgar por si mesmo, na leitura dos quatro capítulos que compõem a exposição, a qualidade das evidências empíricas que recolhi em benefício desta análise, devo fazer dois breves apontamentos teóricos. Aos que se aborrecem com as excursões pela teoria, mesmo que ligeiras, sugiro irem diretamente ao capítulo 1.

perspectiva de classe e repolarização da política 

Se, do ponto de vista do comportamento eleitoral, o sentido ideológico do realinhamento lulista con!rma as pesquisas que empreendi sobre os pleitos de 1989 e 1994,34 quando assinalei que os votantes mais pobres queriam um Estado fortalecido para promover ações de combate à pobreza, mas rejeitavam o caminho da ruptura proposto pela esquerda, o lulismo enquanto rearranjo do bloco no poder me levou a buscar os fundamentos de classe do fenômeno. Decidi fazer a opção teórica de que o ângulo de classe continuava útil para explicar as sociedades capitalistas, em que pesem as mudanças ocorridas desde os anos 1950. Embora fuja ao escopo do livro, voltado para a discussão do Brasil contemporâneo, entrar nos meandros do caudaloso debate a respeito do estatuto das classes sociais no século xxi, espero que algumas referências gerais sejam capazes de situar minimamente o leitor interessado no tema. 

Ainda que fora de moda nos últimos anos, a perspectiva de classe continua a dar sinais de vitalidade nas duas tradições de re"exão que a utilizam — a originada em Marx e a que se nutre em Max Weber. Para relembrar de maneira esquemática as formulações de ambos, Marx propõe no Manifesto comunista a noção de que as classes se efetivam na luta de classes, sendo esta sempre “uma luta política”. 35 Os autores do Manifesto indicam que o desenvolvimento das forças produtivas tende a criar diferentes relações de produção e, portanto, distintas classes, em potencial, mas que estas só se realizam no plano da política. 

Forças produtivas e relações de produção constituem modos de produção, que na formulação do Prefácio à “Contribuição à crítica da economia política” aparecem assim: “A grandes traços podemos designar como outras tantas épocas de progresso, na formação econômica da sociedade, o modo de produção asiático, o antigo, o feudal e o moderno burguês”. 36 Em cada um

deles há classes em si, ocupando posições objetivas nas relações de produção. As classes podem transformar-se em classes para si, isto é, conscientes de seus interesses e dispostas a lutar por eles no plano da política. No caso de classes em si que não logram se uni!car e conscientizar-se para a ação coletiva, tendem a aparecer na luta política como massa, estruturada de fora para dentro, como acontece em O 18 Brumário.37 As classes fundamentais, por serem portadoras de um projeto histórico, como é o caso da burguesia e do proletariado no capitalismo, tenderiam a se organizar enquanto classes; as demais, a surgir na política como massa. O funcionamento da consciência, nas frações de classe que aparecem como massa, assemelha-se ao da pequena burguesia, isto é, seriam incapazes de perceber o contexto real em que estão situadas, pois este lhes é adverso. 

Na visão alternativa de Weber, classe seria “todo grupo humano que se encontra em uma mesma situação de classe”. A “situação de classe” é de!nida por um “conjunto de probabilidades típicas” de acesso a bens, a status, e de destino pessoal dentro de uma determinada ordem econômica.38 Daí a tendência, nos estudos de extração weberiana, em localizar as classes a partir de múltiplos critérios objetivos, como renda, escolaridade, consumo etc. Sobre esse solo comum, diz Weber, “podem surgir processos de associação”. 39 Mas não é obrigatório que isso ocorra. Como a mobilidade de uma classe a outra é razoavelmente simples, a “unidade” das classes sociais se “manifesta de modo muito diverso”. 40 De maneira mais restrita, segundo Richard Aschcra, “numa leitura plausível de Weber (adotada por um extenso segmento de sociólogos políticos americanos), é possível a!rmar que ele de!niu classes no sentido econômico em termos da fonte e da natureza da renda dos seus membros”.41 

As intensas transformações sofridas pela estrutura social capitalista no século xx, matriz das experiências analisadas por Marx no século xix, tornaram difícil a tarefa dos que procuram pensar a partir das categorias formuladas por ele. Perry Anderson, já no início dos anos 1990, fazia o

seguinte balanço de “cinco eixos de diferenciação” 42 das classes no capitalismo avançado. Em primeiro lugar, houve a ascensão dos serviços, com declínio da classe trabalhadora manual para cerca de 1/4 da força de trabalho, sendo superada pelo número de empregados do setor terciário, e, simultaneamente, o afrouxamento dos laços de solidariedade entre os dois segmentos. Em segundo, aumentou a diversidade interna da própria classe trabalhadora manual, com bons salários na ponta mais alta e longos períodos de desemprego na mais baixa. Em terceiro, surgiram novas clivagens etárias. O prolongamento da adolescência, com uma demora e di!culdade para ingressar no mercado pro!ssional, gerou cultura juvenil autônoma. Simultaneamente, a longevidade incrementou o peso dos aposentados na população, restando aos trabalhadores da “segunda idade” carregar sozinhos pesado fardo econômico. Em quarto, o incremento do número de mulheres no mercado de trabalho fez crescer a importância da clivagem por gênero, tornando as reivindicações femininas pauta obrigatória das lutas trabalhistas. Em quinto, o maior número de imigrantes “erodiu a cultura de solidariedade na população trabalhadora”. 43 O resultado de tudo isso foi uma intensa fragmentação da “antiga” classe operária. 

Mas justamente pela compreensão das transformações apontadas acima — ou seja, pela captura das novas con!gurações de classe — é que seria possível apreender a dinâmica política contemporânea. Escrevendo em março de 2009, Anderson argumenta, por exemplo, que a incapacidade de uma das tradições intelectuais mais respeitáveis da Europa, a que foi inaugurada por Gramsci, para lidar com a fragmentação pós-moderna do trabalho di!culta-lhe a decifração da política italiana atual.44 

Na linha de pesquisa que lê preferencialmente Weber, encontram-se a!rmações parecidas. Os trabalhos de Geoffrey Evans, entre outros, procuram mostrar como o voto de classe, incorporadas, é claro, as novidades ocorridas desde os anos 1950, continua a ser relevante para explicar o comportamento político na Europa e nos Estados Unidos.45 Sem dúvida, em função das

transformações sociais, as classes precisam ser rede!nidas. Sugere-se um esquema de quatro classes, separando a pequena burguesia (autônomos), uma classe gerencial de serviços, uma classe de trabalhadores não manuais de baixa responsabilidade (empregados de escritório de escalão baixo) e a classe trabalhadora propriamente dita.46 O reconhecimento de uma fração de classe gerencial e outra ligada às funções de quali!cação menor nos escritórios também comparece na tradição marxista. Já na década de 1970, Nicos Poulantzas assinalava que os engenheiros e técnicos seriam “portadores da reprodução das relações ideológicas no próprio seio do processo de produção material”.47 Por volta da mesma época, Paul Singer indicava no Brasil a existência de duas frações da pequena burguesia: a tradicional, composta de “produtores diretos não assalariados, proprietários dos seus meios de produção”, e a pequena burguesia recente, a qual incluiria assalariados que não se confundem com a classe trabalhadora por exercerem atividades gerenciais.48 Décadas mais tarde, Fernando Haddad acrescentaria a sugestão de que a segunda camada é integrada também por “agentes sociais inovadores”.49 

Em resumo, há um conjunto de sintomas de que a categoria classe vem sendo reabilitada nas duas escolas para explicar a sociedade contemporânea. 50 De olho nessas contribuições, o sociólogo Louis Chauvel propôs uma de!nição de classe que busca tornar complementares os critérios de uma e de outra formulação. De acordo com Chauvel, classes deveriam ser entendidas como grupos sociais de!nidos, de um lado, pela quantidade de riqueza apropriada e, de outro, por três dimensões de identidade: temporal, cultural e coletiva. Na primeira, está em jogo a durabilidade da identi!cação. Na segunda, a existência de referências simbólicas comuns e estilos de vida compartilhados. Na terceira, a capacidade de participar de ação coletiva. Os elementos de identidade dão conta dos valores imateriais e poderiam se aplicar a qualquer agrupamento: de gênero, étnico, regional, religioso etc. O que os transforma em atributos de classe é o fato de se referirem a grupos

sociais definidos no plano da economia (apropriação da riqueza). No Brasil, afora a tradição inspirada em Marx, à qual voltaremos adiante, autores como Marcelo Neri, Amaury de Souza e Bolívar Lamounier, de um lado, e Jessé Souza, de outro, recorreram à noção de classe para dar conta das mudanças em curso no lulismo. Neri usa instrumental econômico e estatístico para medir classes de renda. Inspirados em Weber, Souza e Lamounier buscam em pesquisas quantitativas as “características objetivamente mensuráveis, como a educação, a renda e a ocupação, entendidas como atributos individuais”, 51 que seriam elementos para identi!car as classes na sociedade brasileira. A partir delas, procedem a extensa análise de crenças e atitudes do que chamam “nova classe média”. Já Jessé Souza, também leitor de Weber e Pierre Bourdieu, argumenta que é na “transferência de valores imateriais” que reside o “mais importante” fator para separar as classes. 52 Procurará, por meio de pesquisas qualitativas, capturar a unidade simbólica do que chama “ralé” e “nova classe trabalhadora” no Brasil de hoje. Nos capítulos 3 e 4 o assunto será retomado. 

Por agora, deseja-se destacar que este livro não se encontra isolado na decisão de usar a categoria “classe” para entender o período 2002-10. É original apenas a sugestão de que o deslocamento do subproletariado, uma fração de classe com importante peso eleitoral, provocou o surgimento do lulismo (capítulo 1). O lulismo, por seu turno, teria impactado o pt (capítulo 2), dando suporte à virada programática que começara em 2002. Em seguida, no segundo mandato, o governo Lula, sustentado pelo subproletariado e por um partido lulista, a!ançou o modelo de arbitragem entre as classes fundamentais, dando asas a um imaginário rooseveltiano (capítulo 3). E o conjunto de mudanças pode ser entendido como um reformismo fraco, que, simultaneamente, reproduz e avança as contradições brasileiras (capítulo 4). 

O ângulo de classe, diferentemente da maioria das explicações que tendem a enxergar despolarização e despolitização no período do lulismo, me levou a pensar que o realinhamento provocou uma repolarização e uma repolitização

da disputa partidária. É verdade que até em relação a autores do mesmo campo teórico há diferenças a esse respeito. Avaliando o pleito de 2006, Francisco de Oliveira refere-se a um suposto desinteresse do eleitorado, “re"exo de que a política não passa pelo con"ito de classes”. 53 De acordo com Oliveira, nesse pleito teria havido “a porcentagem mais alta de ‘indiferença’ eleitoral da história moderna brasileira, aproximando-se dos números da abstenção dos norte-americanos nas eleições presidenciais”. 54 Ruy Braga observa que haveria um “efeito regressivo” do lulismo: nele, a política afasta-se dos embates hegemônicos e refugia-se “na sonolenta e desinteressante rotina dos gabinetes”.55 Desde esse ponto de vista, a polarização entre ricos e pobres ocorrida na eleição de 2006 (e reproduzida em 2010) teria sido ilusão de ótica. Mas, como se pode observar na tabela 1 do Apêndice, as taxas de abstenção em 2006 não foram maiores do que as apresentadas desde 1994, sendo até um pouco menores que as de 1998 e 2002, o que indica interesse pelo pleito. Retornaremos ao assunto adiante. 

Em outra chave, Brasílio Sallum Jr. 56 também avalia haver despolarização, pois acha que se estabeleceu um consenso liberal-desenvolvimentista. Para ele, o governo Lula se aproximou da plataforma liberal de fhc, que consistia em tirar o Estado das atividades empresariais, desenvolver políticas sociais, equilibrar as !nanças públicas e derrubar a antiga proteção varguista à empresa nacional. Sobretudo, haveria um consenso de que a estabilidade monetária seria um valor supremo. A plataforma liberal teria se combinado, desde o governo do psdb, com a busca de inserção internacional competitiva, passando pelo estímulo a diversas atividades agrícolas, industriais e de serviços, e atração de multinacionais que pudessem adensar cadeias produtivas internas. Em outras palavras, seria um liberalismo seletivo, associado à defesa de setores específicos da economia. 

Mas as medidas de proteção à parcela mais pobre da população não teriam caráter liberal. Por isso, o terreno comum entre tucanos e petistas deveria ser considerado “liberal-desenvolvimentista”. Sallum Jr. reconhece o que

denomina de “novo ativismo estatal” no segundo mandato de Lula, que, embora pudesse signi!car uma in"exão desenvolvimentista, continuaria a ser liberal, ou seja, atuaria dentro dos marcos estabelecidos no governo anterior. A hipótese de uma in"exão desenvolvimentista, sugerida por Sallum Jr., é interessante para caracterizar o lulismo, como veremos no capítulo 3. Porém, cabe ressaltar que a política social, voltada para os mais pobres, com re"exos sobre o mercado interno e as relações de classe, inicia desde 2005-06 uma polarização entre ricos e pobres que escapa ao terreno comum de um possível liberal-desenvolvimentismo, pois ela opõe de maneira consistente os que desejam maior intervenção estatal aos que preferem soluções de mercado. 

Igualmente para Luiz Werneck Vianna, o empenho, bem-sucedido, do governo Lula teria sido o de despolitizar e, portanto, despolarizar os conflitos.57 Vianna percebe na constituição de um “Estado de compromisso”, arbitrando em seu interior a negociação entre grupos de interesse, a característica central do lulismo. “Nesse ambiente fechado à circulação da política, a sua prática se limita ao exercício solitário do vértice do presidencialismo de coalizão, o chefe de Estado.” 58 A despolitização resultante se re"etiria no esvaziamento do Parlamento e do sistema de partidos, cuja função de comunicar a opinião que se forma na sociedade civil estaria, assim, bloqueada. Ou seja, por razões diferentes das sugeridas por Oliveira e Braga, que estão pensando no sequestro neoliberal da política, Sallum Jr. e Werneck Vianna coincidem quanto à inclinação do governo Lula à pasteurização. 

Um quinto autor, Marcos Nobre, expõe, com outras nuances, o que seria a “anulação” da política no lulismo. Nobre sugere que a cultura política brasileira teria encontrado, na saída da ditadura, um estilo particular, o peemedebismo, de absorver a “ascensão de pobres e remediados à condição de representados políticos”. 59 O peemedebismo se caracterizaria por um sistema de vetos construído no período de transição à democracia, o qual 

representaria a capacidade de bloquear mudanças estruturais. A partir de 2005, com a plena incorporação do pmdb ao seu governo, Lula teria passado a

“ampliar de tal maneira o centro político que a polarização praticamente desapareceu”. Ao fazê-lo, destruiu a bipolaridade existente no período fhc. A peemedebização do lulismo implicaria uma “regressão política”, fazendo prever “uma reorganização de grandes proporções”, uma vez que “o sistema político não sobrevive sem polarização”. Enquanto isso não acontece, teríamos “uma sociedade amputada por uma representação política excludente”, o que explicaria por que a eleição de 2010 teria !cado “entre o chocho e o abstruso, sem nada de realmente relevante entre as duas coisas”, numa análise que lembra a de Oliveira sobre o pleito de 2006. Em suma, o sistema de vetos teria retirado qualquer possibilidade de movimento à política. 

Penso, entretanto, que, nesse aspecto, a razão está com Fábio Wanderley Reis, quando indica que o lulismo produziu não despolarização, mas um tipo de polarização distinto: “O lulismo, combinando simbolismo popular e empenho redistributivo, resultou em algo inédito nas disputas presidenciais, tendendo a caracterizar o processo eleitoral de maneira geral: a intensa correlação, que transpareceu com nitidez especial na eleição de 2006, entre o apoio eleitoral a um candidato ou outro e a posição socioeconômica dos eleitores — com as projeções regionais dessa correlação”. 60 Mas, coerentemente com a visão construída desde a década de 1970, Reis não vê polaridade ideológica, e sim processo de identi!cação com base em “imagens toscas”, desde o qual se poderia enxergar “o caso de Lula como parte de uma nova onda populista na América Latina, que alguns identi!cam em casos como o dos Kirchner, na Argentina, e os de Hugo Chávez (Venezuela), Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador)”.61 Procuraremos argumentar que o lulismo faz uma rearticulação ideológica, que tira centralidade do con"ito entre direita e esquerda, mas reconstrói uma ideologia a partir do conflito entre ricos e pobres. 

Note-se que, embora Reis tenha tentado evitar as conotações negativas da expressão “populismo”, ao argumentar que o neopopulismo não precisa estar

carregado de apelos fraudulentos e instituições frágeis, como aparece, por exemplo, na exposição de Fernando Henrique Cardoso em conferência na oea,62 ambos entendem o populismo pelo viés cognitivo. “O populismo está de volta, ainda de forma restrita. Mas está de volta e é uma ameaça à democracia”, disse o ex-presidente referindo-se à América Latina. O populismo, de acordo com Cardoso, caracteriza-se por uma relação personalista e direta do líder carismático com a população, em lugar do governo baseado em regras e instituições. Notabiliza-se, outrossim, pela crítica constante a essas mesmas instituições, que passam a ser desacreditadas, e por um discurso simpli!cado e vazio, “assente na manipulação e na propaganda em vez de em fatos ou na opinião informada”. A visão “cognitivista” do 

lulismo exclui a visada de classe, desde a qual Francisco Weffort analisou, em sua época, o populismo varguista,63 e que atualizada permite, a meu ver, entender o lulismo. Voltarei a debater o esquema interpretativo de Reis, um dos mais completos sobre a política brasileira contemporânea, ao longo do livro. 

Há, !nalmente, uma terceira linha de compreensão, que destaca a existência de polarização, mas sem identi!car o deslocamento ideológico produzido pelo lulismo no interior dela. Rudá Ricci vincula a vitória de Lula em 2006 ao voto dos mais pobres e, ao analisar a eleição de 2008, chega à conclusão de que se manteve a polarização pt-psdb, “tendo o pmdb como !el desta balança”. 64 A análise de Fernando Limongi e Rafael Cortez vai adiante, indicando que a polarização entre pt e psdb foi transplantada para os estados na eleição de 2010. “A polarização pt-psdb na eleição presidencial repercute e reorganiza as disputas pelos governos estaduais.” 65 Juarez Guimarães, por sua vez, tomando como foco o segundo turno da eleição de 2010, a!rma que se deu uma “polarização inédita na história brasileira recente”. 66 Nela, Guimarães enxerga componentes ideológicos: esquerda e direita teriam vindo à tona, “conformando uma disputa que indicava dois caminhos diametralmente opostos para o Brasil”.

A diferença entre a minha abordagem e a dos autores dessa última corrente é que, embora estejamos de acordo que a polarização pt-psdb, estabelecida desde 1994, continua a existir e é decisiva, penso que ela mudou de conteúdo. Estaríamos em face de uma repolarização da política brasileira, na vigência da qual o sentido da disputa entre pt e psdb se alterou. Guimarães tem razão ao perceber que o pt se tornou “mais Brasil”. O busílis é que, ao se tornar “mais 

Brasil”, ele se torna menos “dos trabalhadores”, isto é, opera um deslocamento de classe e, portanto, ideológico, que Guimarães não incorpora à sua análise. A ascensão do subproletariado, do qual o pt se tornou o representante na arena política, por isso se assemelhando a um “partido dos pobres” de estilo anterior a 1964, signi!ca que as classes fundamentais passam para o fundo da cena. Foi por isso que a polarização entre esquerda e direita esmaeceu, sendo substituída por uma polarização entre ricos e pobres, parecida com a do período populista. 

Um sintoma de que não há despolarização é o comparecimento estável nas eleições presidenciais de 2002, 2006 e 2010 (ver tabela 1 do Apêndice). Sem voltar ao recorde de participação estabelecido na eleição de 1989, com abstenção de somente 12% no primeiro turno e 14% no segundo, a ausência nas eleições desde 2002 esteve dentro da faixa estabelecida em 1994 e 1998, ao redor de 20%. Não houve diminuição do interesse porque a disputa entre ricos e pobres mobiliza o eleitorado. Os números apresentados nos capítulos 1 e 4 são expressivos de que em 2006 e 2010 houve nítida separação entre o voto dos pobres e o dos ricos. Simultaneamente, ocorreu diminuição do alinhamento ideológico que prevaleceu entre 1989 e 2002, quando os votos da esquerda estavam com o pt e os da direita eram anti- pt. A hipótese que testei e m Esquerda e direita no eleitorado brasileiro 67 se con!rmou até 2002 (inclusive). Apesar da baixa escolaridade média do eleitorado, havia uma coerência ideológica dos votos em cerca de 3/4 dos eleitores: aqueles que se colocavam à direita, entre os quais os de baixa renda, tendiam a votar nos

candidatos mais conservadores, a começar por Collor, o contrário acontecendo conforme se avançava para as rendas maiores, em que aumentava, estatisticamente, a adesão à esquerda e o voto em Lula. Mas isso se altera em 2006. 

Em suma, penso que no lulismo a polarização se dá entre ricos e pobres, e não entre esquerda e direita. Por isso, a divisão lulista tem uma poderosa repercussão regional, e o Nordeste, que é mais pobre, concentra o voto lulista. Daí, igualmente, termos maioria tucana de São Paulo para o Sul, e petista do Rio de Janeiro para o Norte. Isso signi!ca que o lulismo dilui a polarização esquerda/direita porque busca equilibrar as classes fundamentais e esvazia as posições que pretendem representá-las na esfera política. Desse ângulo, as análises que falam em despolarização e despolitização têm um momento de verdade, isto é, descrevem parcialmente o processo. Acontece que o lulismo separa os eleitores de baixa renda das camadas médias, tornando os dois principais partidos do país — pt e psdb — representativos desses polos sociais. Assim, mesmo que obrigados a !carem programaticamente próximos em função do realinhamento, pt e psdb são as expressões de uma polarização social talvez até mais intensa do que a dramatizada por ptb e udn nos anos 1950. A diferença está em que os partidos de agora evitam a radicalização política da polarização social. 

Não por acaso, o realinhamento iniciado em 2002 lembra o descrito por Maria do Carmo Campello de Souza para a etapa 1945-64.68 A autora mostra que o ptb começava a ganhar terreno fora dos grandes centros, obrigando a udn a buscar refúgio no seu reduto natural, a classe média urbana. O lulismo fez o pt crescer no interior do Nordeste, solapando as !leiras do dem, o que empurrou a oposição a procurar energia junto às camadas urbanas em ascensão, como explicitou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. 69 Ainda segundo Campello de Souza, nessa passagem de acordo com a análise de Gláucio Soares,70 o eleitorado do pré-1964 estava se realinhando com o ptb

(pobres das cidades e do interior) e a udn (classes médias urbanas), como se dá hoje com o pt e o psdb. 

política de massas e revolução passiva 

A aplicação mecânica de conceitos atrapalha a apreensão do objeto. Bem usados, entretanto, os conhecimentos gerados pela explicação de circunstâncias históricas anteriores podem ser aliados na iluminação do presente. Constituindo, desde o alto, o subproletariado em suporte político, o lulismo repete mecanismo percebido por Marx em O 18 Brumário.71 A análise de Marx é que as frações de classe que demonstram di!culdades essenciais para se organizar e tomar consciência de si, como já vimos, apresentam-se na política enquanto massa. Destituída da possibilidade de agir por meios próprios, a massa se identi!ca com aquele que, desde o alto, aciona as alavancas do Estado para beneficiá-la. 

Quando a massa encontra uma liderança que a uni!ca, entra em cena de maneira intempestiva, por não ser precedida do vagaroso percurso que acompanha a ascensão de classe que se auto-organiza. No entanto, é necessário deixar explícito, para evitar mal-entendidos, que as similitudes entre o Bonaparte iii e Lula são limitadas.72 Nenhuma revolução antecedeu o lulismo, como aconteceu na França com Bonaparte iii. Tampouco há elementos militares envolvidos em sua gênese, como no episódio francês. Parecem-se apenas na política de massas de caráter projetivo, sem a qual o viés profundamente popular do lulismo se torna incompreensível, e na inclinação a pairar acima das classes, deixando opaco o solo em que !nca as raízes. 

Do ponto de vista dos resultados, sendo um exemplo de movimento sem mobilização, poder-se-ia considerar o lulismo um caso de “revolução passiva”, conforme pensada por Gramsci. Cabe recordar a de!nição de Carlos Nelson Coutinho: “Deve-se sublinhar, antes de mais nada, que um processo de

revolução passiva, ao contrário de uma revolução popular, realizada a partir ‘de baixo’, jacobina, implica sempre a presença de dois momentos: o da ‘restauração’ (na medida em que é uma reação à possibilidade de uma transformação efetiva e radical ‘de baixo para cima’) e o da ‘renovação’ (na medida em que muitas demandas populares são assimiladas e postas em prática pelas velhas camadas dominantes)”.73 O próprio Coutinho adverte que “o conceito de revolução passiva constitui [...] um importante critério de interpretação para compreender não só episódios capitais da história brasileira, mas também, de modo mais geral, todo o processo de transição de nosso País à modernidade capitalista”. 74 Não seria o lulismo mais um capítulo a ser adicionado ao rol de passagens modernizadoras sem mobilização às quais se aplicaria a noção de revolução passiva? 

Werneck Vianna, para quem o Brasil “pode ser caracterizado como o lugar por excelência da revolução passiva”, 75 entende que, no caso do lulismo, entretanto, ocorre uma inversão do modelo. Aqui, as forças da antítese (leia se: o pt) “não quiseram assumir os riscos de sua vitória”, optando por assumir o programa da tese (leia-se: o psdb), contra a qual haviam construído a sua 

identidade.76 Então, foi “o elemento de extração jacobina” quem acionou “os freios”.77 Ou seja, em lugar de o partido conservador cooptar os quadros revolucionários para executar de maneira controlada as alterações renovadoras, na prática lulista os elementos conservadores é que foram cooptados pelos dirigentes de origem progressista, corroborando o diagnóstico de Oliveira, para quem “parece que os dominados dominam, pois fornecem a ‘direção moral’ e, !sicamente até, estão à testa de organizações do Estado”.78 

Oliveira está às voltas com o paradoxo de uma troca no comando do Estado, sem que houvesse um correspondente desvio na orientação do Estado. Ele interpretará o enigma como sendo “o avesso” da hegemonia, isto é, a transformação do consenso para a manutenção da dominação. Eis o absurdo: em lugar de justi!car a conservação, o consenso simula a mudança, que na

superestrutura de fato se realiza (o paradoxo de Werneck), apenas para a!ançar a dominação antiga. Diante do tamanho da encrenca, Oliveira a!rma: “É uma revolução epistemológica para a qual ainda não dispomos de ferramenta teórica adequada”.79 

Werneck resolve de modo distinto a “inversão da lógica da revolução passiva”.80 Enquanto Oliveira enxerga “capitulação ante a exploração desenfreada”,81 Werneck aponta que a “forma bizarra” da revolução passiva lulista implicou o bloqueio da agenda conservadora constituída pelas reformas 

tributária, previdenciária, sindical e trabalhista. A estranheza do quadro leva Werneck a ressaltar o papel da “ação carismática do seu principal !ador e artífice”,82 o presidente da República, que precisa equilibrar as tensões “importadas” para dentro do Estado a partir do seu prestígio popular. Na esteira desse raciocínio, Ricci sugere que só Lula seria capaz de formular um discurso que articula retardo e modernização, atingindo assim uma sociedade em que o capitalismo tem forma híbrida, meio norte-americana (capitalista moderna) e meio atrasada.83 Vale notar que o primeiro ano do governo Dilma Rousseff desmentiu as expectativas tanto de Werneck Vianna quanto de Ricci, pois, mesmo sem o carisma e a capacidade retórica de Lula, Dilma conseguiu equilibrar as tensões importadas para dentro do Estado e manter o discurso que equaciona, em estilo lulista, as disparidades do capitalismo nacional. 

Para complicar ainda mais o quadro, a contar de 2005-06, o setor “atrasado” da sociedade brasileira, a saber, a massa rural e semirrural do Nordeste, que não encontrava lugar nas relações de mercado capitalistas “normais”, se desliga do bloco histórico ao qual sempre esteve vinculada, ultimamente representado pelo pfl-dem, aderindo ao lulismo. 84 Para !car no âmbito das categorias gramscianas, a importância desse descolamento equivale à resolução do que poderíamos chamar de a nossa “questão setentrional”, aludindo ao famoso ensaio do comunista sardo sobre a “questão meridional” na Itália. Gramsci acredita que a burguesia industrial italiana formara um bloco histórico com os latifundiários do Sul. A debilidade do

capitalismo italiano residia em não ter rompido com os elementos do Sul retardatário, quando da uni!cação do país. O Risorgimento do século xix resultou de uma aliança da burguesia liberal moderada com os grandes proprietários, sob a égide da monarquia, numa típica revolução passiva. O atraso do Sul era funcional para a burguesia do Norte, uma vez que representava um mercado cativo e também fonte de mão de obra barata. 85 A massa camponesa, incapaz de “dar uma expressão centralizada às suas aspirações e necessidades”, 86 !ca ligada, por meio dos intelectuais locais, “ao grande proprietário rural”. 87 Em outras palavras, o desenvolvimento do capitalismo na Itália estava travado por vasto bloco histórico que reunia dos industriais do Norte ao camponês do Sul, deixando a classe operária isolada.88 A situação bene!ciava até mesmo a aristocracia operária, cuja expressão política seria o reformismo social-democrata, que podia ser cooptada devido às altas margens de lucro da burguesia nortista. Não seria possível alterar o quadro, a menos que se operasse “com base nas forças populares tais quais são historicamente determinadas”, pensava o dirigente do pci.89 

No Brasil há inúmeras indicações de que as massas agrárias também estiveram tradicionalmente sob o domínio dos grandes proprietários rurais. O coronelismo, que expressa o vínculo e a função dos chefes locais na evolução do país, não deve ser desconsiderado, como atesta Victor Nunes Leal, 90 mesmo depois da redemocratização de 1945. As constatações concernentes às bases sociais do conservadorismo na década de 1990 por Scott Mainwaring, Rachel Meneguello e Timothy Power91 revelam a durabilidade da ligação, quase adentrando o século xxi. 

O populismo varguista deixou intocada a estrutura coronelista, embora deslocasse a oligarquia cafeeira paulista do centro do poder. De acordo com Weffort,92 o varguismo representa tentativa de equilibrar as diferentes frações burguesas, tendo como suporte as massas urbanas em expansão, oriundas da migração rural, e os coronéis do interior. Por isso, quando os movimentos populares dos anos 1960 tentaram romper o elo entre as massas rurais e os

latifundiários, por meio de uma reforma agrária substantiva, o pacto populista veio abaixo. Com a ditadura militar (1964-85), a união entre as massas rurais nordestinas e o bloco conservador se renova, gerando repetidas vitórias da Arena nos chamados grotões, o que postergou a decomposição do regime castrense. Redemocratizado o país, o pfl constituirá um dos principais partidos nacionais, herdando o vínculo conservador secular. Sustentado pela antiga fidelidade de extração coronelista, o pfl chegou a competir com o psdb pela primazia na sucessão de fhc em 2002.93 A relação entre conservadores e massas do interior, sobretudo no Nordeste, é rompida apenas quando acontece o deslocamento lulista em 2006, que se projeta para 2010 e além. Em resumo, o realinhamento eleitoral de 2006 signi!ca a mudança de um padrão histórico de comportamento político das camadas populares no Brasil, em particular no Nordeste. 

A fração de classe “sempre esquecida enquanto uma classe de indivíduos ‘precarizados’ que se reproduz há gerações” 94 se desligou das classes dominantes em 2006. Daí a polarização entre ricos e pobres. Para Jessé Souza, a ralé, como ele chama a fração de classe que nós denominamos subproletariado, seria explorada enquanto “corpo” pela classe média tradicional.95 “A classe média brasileira, por comparação com suas similares europeias, por exemplo, tem o singular privilégio de poder poupar o tempo das repetitivas e cansativas tarefas domésticas, que pode ser reinvestido em trabalho produtivo e reconhecido fora de casa.” Daí a resistência da classe média ao programa do lulismo de erradicação da miséria, produzindo-se reação muito distante da indiferença política. 

O lulismo mexe com um con"ito nuclear no Brasil, aquele que opõe “incluídos” e “excluídos”. Jessé Souza chega a propor que numa “sociedade perifericamente moderna como a brasileira” esse é o con"ito central, e não o que opõe trabalhadores e burgueses,96 subordinando em “importância todos os demais”. Não obstante haver um equívoco, como veremos, nessa formulação, ela expressa a relevância de termos quase 1/3 da população

brasileira despreparada “para o trabalho produtivo no capitalismo altamente competitivo de hoje”. 97 Ou seja, no fato marcante de que nas camadas populares brasileiras há uma vasta porcentagem que está aquém do proletariado. Sem essa compreensão, não se perfila a importância do lulismo. 

O problema é que Jessé Souza, ao dar centralidade ao con"ito inclusão versus exclusão, tira o capitalismo de cena. Embora numa sociedade que reproduz a exclusão de maneira tão estrutural e contínua o con"ito que a exclusão produz seja de alta relevância, não se pode esquecer que a oposição entre o capital e o trabalho de!ne o destino de toda a época em que vivemos, sendo necessário integrar o problema da exclusão ao conjunto das relações de produção, se quisermos desvendar a totalidade. Na resolução de se o mercado será livre para movimentar o moinho satânico de Polanyi, como gosta de dizer Francisco de Oliveira, ou se o trabalho imporá restrições que preservem o sentido da vida humana, joga-se o futuro da humanidade. Daí decorre que as classes que encarnam as forças organizadas do capital e do trabalho travem uma luta que é a mais central de todas nas sociedades capitalistas, ainda que, no chão brasileiro, ela se combine com a existência histórica da sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente, como procurei apontar acima. 

É mister, portanto, reconhecer que o con"ito de classes está condicionado no Brasil pela existência de uma vasta fração de classe que luta por aceder ao mundo do trabalho formal em regime capitalista, com todos os defeitos que ele possui, tendo estado historicamente dele excluída. Daí a relevância do que poderíamos chamar de a nossa “questão setentrional”, se considerarmos que o 

epicentro dessa fração de classe está no Nordeste. Como lembra Sonia Rocha, “a pobreza no Brasil tem um forte componente regional”, sendo que “o Nordeste permanece como a região mais pobre do país”.98 

Deve-se, então, enxergar que a existência dessa camada dava à burguesia uma supremacia sobre a classe trabalhadora, fazendo com que esta não pudesse aspirar a conquistas mais amplas enquanto não atraísse para a sua

órbita o subproletariado. O lulismo não representa tal passagem — que talvez fosse mais bem sintetizada pela organização autônoma, como é tentada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ( mst), caso ela fosse capaz de congregar dezenas de milhões de subproletários. Porém, o lulismo constituiu a ruptura real da articulação anterior, ao descolar o subproletariado da burguesia, abrindo possibilidades inéditas a partir dessa novidade histórica. 

Mais que inversão de quadros (Werneck Vianna) ou de propósitos (Oliveira), o lulismo representa a criação de um bloco de poder novo, com projeto próprio, para cuja compreensão as noções de política de massa (O 18 Brumário) e de revolução passiva (Gramsci) me parecem úteis, desde que !ltradas pela cor local. Um poder aparentemente acima das classes que leva adiante a integração do subproletariado à condição proletária, assim como o varguismo soldou os migrantes rurais à classe trabalhadora urbana por meio da industrialização, da clt e do ptb. Donde as linhas de continuidade entre varguismo e lulismo devam ser objeto de cuidadosa pesquisa. 

O que torna difícil avaliar o tamanho da virada em curso no lulismo, fazendo pensar até em retrocesso, é o fato de que se esperava a execução de um programa “intensamente reformista no sentido clássico que a sociologia política aplicou ao termo”. 99 Isso teria, provavelmente, levado a uma radicalização entre burguesia e proletariado, com um incremento da mobilização social, como queria a primeira alma do pt. “Começadas as grandes mudanças estruturais, seguir-se-ia o momento da mobilização popular e da sua contínua intensificação”,100 escreveu Werneck Vianna. Mas a revolução passiva em andamento, mesmo cumprindo parte da agenda dos subordinados, não inclui o roteiro imaginado antes. 

Na prática ocorreu algo como um “semitransformismo”. Os quadros do pt que anteriormente defendiam o programa “intensamente reformista” se tornaram agentes de um reformismo fraco, comprometidos com a decisão de não causar a radicalização que pregavam na origem. Meu argumento é que o reformismo lulista é lento e desmobilizador, mas é reformismo. Cria-se a

ilusão de ótica da estagnação para, na realidade, promover modi!cações em silencioso curso. Com respeito à pobreza, por exemplo, cabe ressaltar que a velocidade de redução nem é pequena em termos absolutos, sobretudo no Nordeste. A queda da desigualdade, medida pelo índice de Gini, como veremos nos capítulos 3 e 4, ganhou rapidez no lulismo do segundo mandato. Representa, entretanto, um movimento vagaroso diante da abissal desigualdade brasileira, mantendo-se um largo estoque de iniquidade para as décadas seguintes, e se realiza sem mobilização e organização desde baixo, o que pode comprometê-lo numa situação de crise. 

Note-se, por !m, que a reação das camadas médias às in"exões em curso, mesmo que o espírito que as preside seja moderado e conciliador, re"ete a brisa da mudança. A polarização que ocorre na sociedade é sintoma de movimento nas estruturas. O subproletariado se !rma no suporte a Lula e ao pt, na expectativa de que se cumpra o programa de inclusão, enquanto a classe média se unifica em torno do psdb, na procura de restaurar o status quo ante, mesmo que isso não possa ser dito com todas as letras. 

Ao longo dos capítulos procurei dar substância empírica ao esquema interpretativo adiantado nesta Introdução. Tomei, contudo, a opção de não fechar a porta às explicações alternativas. Como já disse, o lulismo é recente e o seu sentido histórico não se !xou. Em outras palavras, o fenômeno está em movimento quando este livro é concluído, não recomendando conclusões precipitadas. Acresce o fato de eu ter participado do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência da República — como se conta no Posfácio —, obrigando-me a redobrar os cuidados com a objetividade. A!nal, a meta do trabalho, por ser acadêmico, é contribuir para aumentar o conhecimento sobre o lulismo — independentemente das virtudes e defeitos que cada um nele possa depositar do ponto de vista subjetivo. 

Comecei a estudar o assunto quando deixei o governo federal, em meados

de 2007, tendo publicado o primeiro resultado da pesquisa em 2009, na revista Novos Estudos, do Cebrap. Em 2010, a mesma publicação editou artigo que escrevi sobre o impacto do lulismo no pt, segundo passo do conjunto. Depois, uma exposição a respeito do segundo mandato, preparada para seminário da fgv-sp, saiu em piauí em outubro de 2010. Agradeço aos editores Flávio Moura e Joaquim Toledo Jr. ( Novos Estudos) e Mario Sergio Conti ( piauí) a oportunidade de apresentar os meus argumentos nos dois prestigiosos veículos que dirigiam. 

A divulgação dos três artigos suscitou uma série de debates que me levaram a mudar aspectos do argumento, ampliar outros e até mesmo eliminar alguns, chegando ao esquema interpretativo acima exposto. Sou, desse modo, devedor de todos os que participaram das referidas discussões. Pela natureza dispersa da contribuição não poderei citar cada um dos presentes, mas gostaria de que soubessem do meu reconhecimento. 

Por meio de Roberto Schwarz, agradeço aos círculos de domingo, em cujas conversas esclareci diversos pontos. Roberto, a quem estou ligado por amizade e antigos vínculos familiares, foi inspirador na construção de hipóteses que comparecem no livro, mas não tem responsabilidade alguma sobre seus problemas e insuficiências. 

Graças ao convite de Francisco de Oliveira e Ruy Braga pude me integrar ao Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da Faculdade de Filoso!a, Letras e Ciências Humanas da usp e ouvir experientes colegas pesquisadores. Chico, que foi meu principal interlocutor na volta de Brasília, mostrou que pensamento radical e aceitação das divergências podem conviver e se fertilizar. Por meio dele, e de Ricardo Musse, quero agradecer, igualmente, aos companheiros do Laboratório de Estudos Karl Marx (Lemarx) da usp, parceiro do Cenedic, por inúmeras sessões de animado debate. 

Fui bene!ciado pelo ambiente acadêmico civilizado e respeitoso do

Departamento de Ciência Política (dcp) da usp, a cujos colegas, orientandos e alunos, agradeço por meio dos que exerceram a che!a no período, professores Álvaro de Vita e Fernando Limongi. As aulas e os seminários do dcp foram oportunidades de avaliar hipóteses, passo indispensável para a conformação de raciocínios que, a!nal, têm muito de coletivos. Márcia, Rai e Ana, assim como a equipe que lideram, ofereceram, como sempre, o apoio logístico e administrativo imprescindível. Em nome de Gustavo Venturi, do Departamento de Sociologia, gostaria de agradecer, também, aos colegas dos demais departamentos da fflch que participaram das discussões. 

A sessão presidida por Gabriel Cohn no Instituto de Estudos Avançados (iea) da usp, com a presença de José Augusto Guilhon Albuquerque e Luiz Carlos Bresser-Pereira, em março de 2010, foi valiosa para fazer avançar a pesquisa. Por meio do iea, agradeço também ao Ipea, à puc-sp, à ufscar, ao Cedec, ao Cebrap, à abcp, à anpocs, à Escola de Governo e ao Instituto Moreira Salles (ims) pela oportunidade de discutir os temas do livro. 

Fora do ambiente acadêmico, companheiros de atividade partidária, jornalistas e amigos deram contribuições ao desenvolvimento do trabalho. Em nome de Elói Pietá, Ricardo de Azevedo e Carlos Henrique Árabe, agradeço à Fundação Perseu Abramo, aos militantes da Mensagem ao Partido ( pt), à Casa da Cidade, à Via Campesina e ao mst. Amir Khair aceitou convite para conversar sobre aspectos econômicos da análise. A ele e aos participantes da mesa das segundas, obrigado. Renato Pompeu, depois de me entrevistar, fez o obséquio de me mandar um ótimo livro de Göran erborn, que usei. Por seu intermédio deixo registrada a dívida com os jornalistas que se interessaram pelas minhas ideias. 

A forma !nal do livro tem por base tese de livre-docência defendida no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Procurei, na medida de minhas forças, incorporar ao volume ora apresentado as sugestões da excelente banca constituída pelos professores Fernando Limongi, Francisco

de Oliveira, Leda Paulani, Luiz Carlos Bresser-Pereira e Maria Victoria Benevides, que proporcionaram um momento de vivo confronto intelectual no Salão Nobre da Faculdade de Filoso!a, Letras e Ciências Humanas no !nal de setembro de 2011. Agradeço aos examinadores a generosidade de considerar os meus argumentos, mesmo quando deles discordavam, sempre com a seriedade e o espírito crítico indispensável à boa atividade universitária. 

Os editores que deram guarida ao trabalho na Companhia das Letras, Matinas Suzuki Jr. e Otavio Costa, !zeram sugestões valiosas, sobretudo para as seções completamente inéditas (a Introdução, o capítulo 4 e o Posfácio). Sou grato a eles tanto pela inteligência das observações quanto pela calorosa acolhida de que fui objeto. 

Por !m, a família foi crucial. Paul Singer, que me ensinou ao longo do tempo quase tudo o que sei, leu, discutiu e corrigiu erros (os muitos que certamente sobraram não passaram por ele). As palavras são poucas para expressar o quanto lhe devo. Silvia Elena Alegre — ânimo dos dias, luz da vida — leu, conversou, ajudou com os números, caminhou junto passo a passo. Por intermédio dela, aceitem, !lhas, netos, irmãs, cunhados e sobrinhos, a minha gratidão. 

Cumpre reiterar, entretanto, que os defeitos do livro são exclusiva responsabilidade do autor. 

  1. De acordo com Ralph Machado, a taxa real passou de 6% para 13% entre 2002 e 2003. Ver Ralph Machado, Lula a.c.-d.c., p. 36. 
  2. Ralph Machado, Lula a.c.-d.c., p. 37. 
  3. Ver Luís Nassif, “Política macroeconômica e ajuste !scal”, em B. Lamounier e R. Figueiredo (orgs.), A era FHC, p. 45. 
  4. Ver <www.jusbrasil.com.br/noticias/2560604>, consultado em 14 mar. 2010. 5. Houve um aumento real de 1,2% no salário mínimo entre 2003 e 2004. Ver Folha de S.Paulo, 1 mar.

2008, p. B1. 

  1. Dados do ibge, segundo <http://economia.uol.com.br>, consultado em 22 fev. 2011. 7. Comparação entre a renda média do trabalhador de março a dezembro de 2002 em relação a março dezembro de 2003, de acordo com a Pesquisa Mensal de Emprego do ibge. Em março de 2002, o ibge adotou nova metodologia de pesquisa, por isso a comparação parte desse mês. Ver Folha de S.Paulo, 25 jan. 2008, p. B7. 
  2. Citado em Leda Paulani, Brasil delivery, p. 50. 
  3. Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco, p. 150. 
  4. Ver <http://economia.uol.com.br>/ultimas-noticias/redacao/2010/12/08/brasil-tem-maior-taxa-real de-juros-do-mundo.jhtm>. 
  5. Ver <http://economia.estadao.com.br>, consultado em 22 fev. 2011. Segundo o ex-presidente do bndes, Demian Fiocca, “descontando efeitos contábeis do Fundo Soberano e da concessão do pré-sal, o superávit primário federal foi reduzido de 2,8% em 2008 para 1,2% em 2009 e em 2010”. Ver Demian Fiocca, “Por que o Brasil cresceu mais”, Folha de S.Paulo, 21 fev. 2011, p. A3. 
  6. Eduardo Scolese, “Bolsa Família já bene!cia 26% dos novos assentados”, Folha de S.Paulo, 7 jun. 2010, p. A11. 
  7. O dado corresponde à expansão do crédito entre 2003 e 2010. Ver Eduardo Cucolo, “Crédito subsidiado chega a 1/3 do total”, Folha de S.Paulo, 29 jun. 2010, p. B1. 
  8. Usamos aqui os dados de Marcelo Neri, A nova classe média, o lado brilhante dos pobres, p. 40, e “Desigualdade no Brasil atinge o menor nível em 2010, diz fgv”, em <http://www1.folha.uol.com.br/poder/910726-desigualdade-no-brasil-atinge-o-menor-nivel-em-2010- dizfgv.shtml>, consultado em 4 jan. 2012. Ver quadro 2 do Apêndice. 
  9. Maria da Conceição Tavares, Desenvolvimento e igualdade, p. 17. 
  10. Idem, entrevista a Vera Saavedra Durão, Valor, 6 nov. 2009. 
  11. Escândalo político-midiático envolvendo o pt em 2005. 
  12. Para um resumo didático dos debates sobre a noção de realinhamento, ver Cees van der Eijk e Mark N. Franklin, Elections and voters, pp. 183-7. 
  13. Agradeço a Fernando Limongi, Gustavo Venturi e Timothy Power as observações a respeito. 20. V. O. Key, Jr., “Secular realignment and the party system”, e Journal of Politics, vol. 1, n. 2, maio 1959. 
  14. Antonio Lavareda, A democracia nas urnas, p. 63. 
  15. John C. Berg, “e debate over realigning elections: where do we stand now?”, Paper apresentado na reunião anual da North Eastern Political Science Association, 2003. Consultado em <www.allacademic.com>, 18 ago. 2010. Versão original em inglês, tradução livre minha. 23. Caio Prado Jr., A revolução brasileira, pp. 252-3. 
  16. Celso Furtado, O longo amanhecer, p. 17. 
  17. Sem querer entrar no debate especializado, uso de modo livre a expressão “sobrepopulação trabalhadora” inspirado em Marx, que fala em “sobrepoblación obrera” como “producto necesario de la acumulación o del desarrollo de la riqueza sobre una base capitalista”; Karl Marx, El capital, Livro 3, cap. 23, p. 786. Acrescento “superempobrecida e permanente” para marcar a especificidade brasileira. 
  18. Caio Prado Jr., A revolução brasileira, p. 264. 
  19. Paul Singer, A crise do “milagre”, p. 76. 
  20. Maria da Conceição Tavares, “O caso do Brasil”, em M. da C. Tavares, Desenvolvimento e igualdade,
  21. 121. O ensaio foi publicado originalmente em 1972. 
  22. Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. 
  23. Idem, ibidem, p. 58. Entre as obras importantes do período encontra-se, também, A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica, de Florestan Fernandes. Esperamos, em outra oportunidade, realizar a revisão que o conjunto desses trabalhos merece. 
  24. Ver Paul Singer, Dominação e desigualdade. Estrutura de classe e repartição da renda no Brasil. 32. A distinção entre a sobrepopulação trabalhadora atingida pelo pauperismo e o lumpemproletariado (marginalidade) está em Marx. Ver Karl Marx, El capital, Livro 3, cap. 23, p. 802. Comparece também em Paul Singer: o subproletariado é composto de “pobres que trabalham” ( Dominação e desigualdade, p. 23). 
  25. Celso Furtado, O longo amanhecer, pp. 32 e 102. 
  26. Ver André Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro. As identi!cações ideológicas nas disputas presidenciais de 1989 e 1994. 
  27. Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto comunista, p. 27. 
  28. Há uma extensa literatura a respeito do desenvolvimento dos modos de produção. Como não é objetivo aqui discutir o assunto, mantivemos a referência ao esquema do Prefácio à “Contribuição à crítica da economia política”, sabendo que para Marx o suposto evolucionismo é uma simpli!cação consciente. Ver Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas (vol. 1), p. 302. 
  29. Karl Marx, “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, em K. Marx, A revolução antes da revolução. 38. Max Weber, Economía y sociedad, p. 242. Tradução minha. 
  30. Idem, ibidem. 
  31. Idem. 
  32. Richard Aschcra, “A análise do liberalismo em Weber e Marx”, p. 208. Mais adiante vamos ver, sobretudo no capítulo 4, como o critério de renda é decisivo para certa compreensão das classes no Brasil hoje. 
  33. Perry Anderson e Patrick Camiller (orgs.), Um mapa da esquerda na Europa Ocidental. 43. Idem, ibidem, p. 22. 
  34. Perry Anderson, “An invertebrate left”, London Review of Books, vol. 31, n. 5, mar. 2009, pp. 12-8. 45. Ver Geoffrey Evans (ed.), The end of class politics? Class voting in comparative context. 46. Ver Ben Cli, “Social-democracy in the 21st century: still a class act?”, em <http://wrap.warwick.ac.uk>, consultado em 23 fev. 2011. 
  35. Nicos Poulantzas, As classes sociais no capitalismo de hoje, p. 256. 
  36. Paul Singer, Dominação e desigualdade, p. 18. 
  37. Fernando Haddad, Trabalho e linguagem, p. 110. 
  38. Ver Louis Chauvel, “Are social classes really dead? A French paradox in class dynamics”, em G. Therborn (ed.), Inequalities of the world, pp. 298-9. 
  39. Amaury de Souza e Bolívar Lamounier, A classe média brasileira, p. 13. 
  40. Jessé Souza, Os batalhadores brasileiros, p. 23. 
  41. Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, em F. de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), Hegemonia às avessas, p. 23. 
  42. Idem, ibidem. 
  43. Ruy Braga, “Apresentação”, em F. de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), Hegemonia às avessas, p. 8.
  44. Brasílio Sallum Jr. e Eduardo Kugelmas, “Sobre o modo Lula de governar”, em B. Sallum Jr., Brasil e Argentina hoje; Brasílio Sallum Jr., “A crise do governo Lula e o dé!cit de democracia no Brasil”, em L. C. Bresser-Pereira (org.), A economia brasileira na encruzilhada; idem, “El Brasil en la ‘pos-transición’: la institucionalización de una nueva forma de Estado”, em I. Bizberg (org.), México en el espejo latinoamericano. 
  45. Luiz Werneck Vianna, “O Estado Novo do pt”, no sítio Gramsci e o Brasil, <www.acessa.com/gramsci/>, consultado em 24 fev. 2011. 
  46. Idem, ibidem. 
  47. Marcos Nobre, “O !m da polarização”, piauí, n. 51, dez. 2010, pp. 70-4. Todas as citações de Nobre se referem a esse artigo. 
  48. Fábio Wanderley Reis, “Identidade política, desigualdade e partidos brasileiros”, Novos Estudos, n. 87, jul. 2010, p. 70. 
  49. Idem, ibidem. 
  50. Ver a conferência pronunciada por Fernando Henrique Cardoso em 30 mar. 2006 na oea. Consultado em <http://www.oas.org>, 25 jan. 2011. 
  51. Francisco Weffort, O populismo na política brasileira. 
  52. Rudá Ricci, Lulismo, pp. 95 e 124. 
  53. Fernando Limongi e Rafael Cortez, “As eleições de 2010 e o quadro partidário”, Novos Estudos, n. 88, dez. 2010, p. 37. 
  54. Juarez Guimarães, “A nova dialética da vida política”, Teoria e Debate, n. 90, nov./dez. 2010, p. 12. 67. André Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro. A identi!cação ideológica nas disputas presidenciais de 1989 e 1994. 
  55. Maria do Carmo Campello de Souza, Estado e partidos políticos no Brasil (1930-1964). Cabe registrar que Souza aplica o termo “realinhamento” à tendência histórica detectada antes por Gláucio Ary Dillon Soares. Ver, desse autor, Sociedade e política no Brasil, pp. 89-93. 
  56. Fernando Henrique Cardoso, “O papel da oposição”, Interesse Nacional, n. 13, abr./ jun. 2011. 70. Gláucio Ary Dillon Soares, Sociedade e política no Brasil. 
  57. Karl Marx, “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, em K. Marx, A revolução antes da revolução. 72. Agradeço a Paulo Arantes e Iná Camargo Costa a recomendação de cautela com a analogia. 73. Carlos Nelson Coutinho, Gramsci, um estudo sobre seu pensamento político, p. 198. 74. Idem, ibidem, pp. 202-3. Ver também Emir Sader (org.), Gramsci, poder, política e partido, pp. 77- 86. 
  58. Luiz Werneck Vianna, A revolução passiva, p. 43. 
  59. Idem, “O Estado Novo do pt”, no sítio Gramsci e o Brasil, <www.acessa.com/gramsci/>, consultado em 24 fev. 2011. 
  60. Idem, ibidem. 
  61. Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, em F. de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), Hegemonia às avessas, p. 26. 
  62. Idem, ibidem, p. 27. 
  63. Luiz Werneck Vianna, “O Estado Novo do pt”, no sítio Gramsci e o Brasil, <www.acessa.com/gramsci/>, consultado em 24 fev. 2011. 
  64. Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, em F. de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.),

Hegemonia às avessas, p. 27. 

  1. Luiz Werneck Vianna, “O Estado Novo do pt”, no sítio Gramsci e o Brasil, <www.acessa.com/gramsci/>, consultado em 24 fev. 2011. 
  2. Rudá Ricci, Lulismo, pp. 85-93. 
  3. Ver, a respeito, Ricardo Luiz Mendes Ribeiro, “A decadência longe do poder. Refundação e crise do pfl”, dissertação de mestrado, São Paulo, dcp/usp, 2011. 
  4. Ver Carlos Nelson Coutinho, Gramsci, um estudo sobre seu pensamento político, p. 67. 86. Antonio Gramsci, “Alguns temas da questão meridional”, Temas de Ciências Humanas, n. 1, 1977, p. 36. 
  5. Idem, ibidem, p. 38. 
  6. Ver Carlos Nelson Coutinho, Gramsci, um estudo sobre seu pensamento político, p. 67. 89. Antonio Gramsci, “Un esame della situazione italiana”, conforme Carlos Nelson Coutinho, Gramsci, um estudo sobre seu pensamento político, p. 61. 
  7. Ver Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto. 
  8. Scott Mainwaring, Rachel Meneguello e Timothy Power, Partidos conservadores no Brasil contemporâneo. 
  9. Ver Francisco Weffort, O populismo na política brasileira, a quem sigo na análise do populismo. 93. A morte de Luís Eduardo Magalhães, em abril de 1998, representou um baque para as pretensões pefelistas. 
  10. Jessé Souza, A ralé brasileira, p. 21. 
  11. Idem, ibidem, p. 24. 
  12. Idem, p. 25. 
  13. Idem, p. 22. 
  14. Sonia Rocha, Pobreza no Brasil, p. 135. 
  15. Francisco de Oliveira, “O avesso do avesso”, em F. de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), Hegemonia às avessas, p. 369. 
  16. Luiz Werneck Vianna, “O Estado Novo do pt”, no sítio Gramsci e o Brasil, <www.acessa.com/gramsci/>, consultado em 24 fev. 2011.
  17. Raízes sociais e ideológicas do lulismo1 

um deslocamento silencioso 

No futuro, quando for escrita a crônica dos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, talvez o pleito de 29 de outubro de 2006 apareça como mera repetição dos resultados de quatro anos antes, eleição em que o candidato do pt venceu o do psdb por uma diferença de 20 milhões de votos. 2 Na superfície, a reiteração da maioria !rmada em 2002. Mas, encoberto sob cifras quase idênticas, houve em 2006 um realinhamento de bases sociais, fazendo emergir o lulismo. 

Aos esforços despendidos para entender o lulismo, 3 vale acrescentar a sugestão de que ele é, sobretudo, representação de uma fração de classe que, embora majoritária, não consegue construir desde baixo as próprias formas de organização. Por isso, só podia aparecer na política depois da chegada de Lula ao poder. A combinação de elementos que empolga o subproletariado é a expectativa de um Estado su!cientemente forte para diminuir a desigualdade sem ameaça à ordem estabelecida. Dado tal arranjo ideológico, a possível hegemonia lulista não seria “às avessas”, como sugeriu Oliveira, ainda que, ao 

juntar elementos de esquerda e de direita, cause a impressão de inverter o arranjo lógico dos argumentos, pois sempre se teve como evidente que, para diminuir a desigualdade no Brasil, seria preciso alterar a ordem.4 

A percepção do movimento profundo que ocorreu em 2006 foi di!cultada porque ele se deu sem mobilização e “sem fazer-se notar”, como assinalou um

ex-ministro.5 O silêncio causado pela desmobilização provocou confusão à direita e à esquerda. Dez meses antes da reeleição, a revista Veja publicava que Lula seria derrotado porque, de acordo com pesquisa do Ibope, 40% do apoio obtido em 2002 tinha se esfumado e a “política assistencialista” não conseguiria segurar o eleitor de baixa renda. “A disputa eleitoral de verdade se dará entre Serra e Alckmin”, escrevia a Veja, mesmo avisando que previsões de longo prazo em matéria de eleição falhavam tanto quanto as meteorológicas.6 Mesmo abertas as urnas, Oliveira ainda duvidava da “interpretação corrente” segundo a qual “o Brasil eleitoral se dividiu entre pobres e ricos”. “Seria ótimo, se fosse plausível que os 40% de votos de 

Alckmin foram dos ‘ricos’, e que a votação de Lula foi exclusivamente dos ‘pobres’”, escreveu Oliveira sobre o primeiro turno.7 

A origem do mal-entendido é dupla. De um lado, houve um movimento subterrâneo de eleitores não de baixa renda, mas de baixíssima renda, que tendem a !car invisíveis para os analistas; reforçou esse efeito o fato de o deslocamento ter sido simultâneo ao estardalhaço em torno do “mensalão”, escândalo que teceu, a partir de maio de 2005, um cerco político-midiático ao presidente, deixando-o na defensiva por cerca de seis meses. 8 No período do “mensalão”, o governo efetivamente perdeu parcela importante do suporte que trazia desde a eleição de 2002. Nas camadas médias, a rejeição desdobrou se em nítida preferência por candidato de oposição à Presidência em 2006. “Entre os brasileiros de escolaridade superior, a reprovação a Lula deu um salto de dezesseis pontos percentuais, passando de 24% em agosto para 40% hoje”, escrevia a Folha de S.Paulo em 23 de outubro de 2005. Três meses depois, porém, enquanto os mais ricos, seguindo no viés anterior, optavam em massa (65%) pelo então pré-candidato do psdb, entre os de renda familiar de até cinco salários mínimos ocorria uma virada em sentido contrário, com um aumento dos índices de satisfação a respeito do mandato de Lula. 9 Sobretudo no fundo da sociedade, onde circulam personagens de escassa repercussão, houve uma crescente inclinação, desde pelo menos o início de 2006, a manter

no Palácio do Planalto o ex-retirante pernambucano que tinha as mesmas origens dos seus recém-apoiadores.10 

A divergência entre os estratos de renda crescerá ao longo de 2006, e os números encontrados pelo Ibope perto do primeiro e do segundo turno expressam uma disputa socialmente polarizada, como mostram as tabelas 1 e 2.11 Nelas, a disposição da parcela mais pobre de sufragar Lula inverte-se de maneira linear à medida que aumenta o rendimento, de sorte que os mais ricos dão folgada maioria a Alckmin. 

tabela 1: 

intenção de voto por renda familiar mensal 

no primeiro turno de 2006 

até 2 sm + de 2 a 5 sm + de 5 a 10 sm + de 10 sm total 

Lula 55% 41% 30% 29% 45% 

Alckmin 28% 38% 45% 44% 34% 

Heloísa Helena 6% 9% 14% 11% 9% 

Cristovam 1% 3% 4% 5% 2% 

Outros 1% 1% 0,3% 1% 1% 

br/Nulo/ 

Indecisos 8% 9% 7% 9% 9% 

total 100% 100% 100% 100% 100%* 

Fonte: Ibope. Pesquisa com amostra nacional de 3010 eleitores realizada entre 28 e 30 de setembro de 2006. 

* Pequenas variações no total correspondem ao arredondamento das porcentagens. 

O que atrapalhou a compreensão e levou analistas como Oliveira a considerarem pouco plausível que os quase 40 milhões de votos em Alckmin no primeiro turno proviessem apenas dos “ricos” foi a singularidade brasileira, que grosso modo transforma em “classe média” todos (aí incluídos setores assalariados de baixa renda) os que não pertencem à metade da população que tem baixíssima renda. Lula foi eleito, sobretudo, pelo apoio que teve neste segmento, enquanto Alckmin contou, além do voto dos mais

ricos, com certa sustentação na fatia de eleitores de classe média baixa, que vagamente corresponde ao que o mercado chama de “classe C”. Na faixa de mais de dois a cinco salários mínimos de renda familiar mensal, por exemplo, Alckmin quase empatava com Lula às vésperas do primeiro turno (tabela 1), mas, entre os eleitores de baixíssima renda (até dois salários mínimos de renda familiar mensal), Lula aparecia com uma vantagem de 26 pontos percentuais sobre Alckmin. Era, destarte, verdadeira a interpretação de que o Brasil se dividiu entre pobres e ricos. A polarização social do pleito efetuou-se pela implantação de Lula entre os eleitores de baixíssima renda, visível desde o primeiro turno, assim como a de Alckmin entre os de ingresso mais alto (acima de dez salários mínimos de renda familiar mensal). 

tabela 2: 

intenção de voto por renda familiar mensal no 

segundo turno de 2006 

até 2 sm + de 2 a 5 sm + de 5 a 10 sm + de 10 sm total 

Lula 64% 56% 44% 36% 57% 

Alckmin 25% 35% 46% 54% 33% 

Branco/ 

Nulo/ 

Não sabe/ Não opinou 

10% 9% 11% 10% 10% 

total 100% 100% 100% 100% 100%* 

Fonte: Ibope. Pesquisa com amostra nacional de 8680 eleitores realizada entre 26 e 28 de outubro de 2006. 

* Pequenas variações no total correspondem ao arredondamento das porcentagens. 

Os dados indicam que o lulismo foi expressão de uma camada social especí!ca e a clivagem entre eleitores de baixíssima renda e de “classe média”, que apareceu nos debates pós-eleitorais sob a forma de “questionamento do real papel dos chamados ‘formadores de opinião’”, 12 outorgou uma

característica única à eleição de 2006. Em perspectiva comparada, as cientistas políticas Denilde Oliveira Holzhacker e Elizabeth Balbachevsky observaram que em 2002 o voto em Lula “não estava especialmente associado com nenhum estrato social”, enquanto em 2006 “os eleitores de classe baixa se 

mostram signi!cativamente mais inclinados a dar seu voto a Lula”. 13 O único caso anterior de polarização por renda em eleições presidenciais, desde a redemocratização, surgira no segundo turno de 1989, sendo que naquela ocasião a candidatura Lula estava, não por acaso, no lado oposto da linha que dividia pobres e ricos. Enquanto Fernando Collor de Mello alcançava vantagem de dez pontos percentuais na faixa de até dois salários mínimos de renda familiar mensal, no segmento mais alto quem obtinha vantagem análoga era Lula (tabela 2 do Apêndice). 

Se no primeiro turno de 1989 havia uma nítida tendência de crescimento do apoio a Collor com a queda da renda, levando à concentração do voto collorido entre os mais pobres, no campo oposto (“classe média”) ocorria uma dispersão nas opções por Lula, Brizola, Covas e Maluf, não caracterizando, ainda, a polarização, que viria a acontecer no segundo turno. 14 Em entrevista concedida após aquele pleito, Lula a!rmava: “A verdade nua e crua é que quem nos derrotou, além dos meios de comunicação, foram os setores menos esclarecidos e mais desfavorecidos da sociedade [...]. Nós temos amplos setores da classe média com a gente — uma parcela muito grande do funcionalismo público, dos intelectuais, dos estudantes, do pessoal organizado em sindicatos, do chamado setor médio da classe trabalhadora”. 15 Consciente do peso eleitoral dos “mais desfavorecidos”, acrescentava: “A minha briga é 

sempre esta: atingir o segmento da sociedade que ganha salário mínimo. Tem uma parcela da sociedade que é ideologicamente contra nós, e não há por que perder tempo com ela: não adianta tentar convencer um empresário que é contra o Lula a !car do lado do trabalhador. Nós temos que ir para a periferia, onde estão milhões de pessoas que se deixam seduzir pela promessa fácil de casa e comida”.16

Em trabalhos sobre 1989, notei, entretanto, que a vitória de Collor não decorria apenas de “promessas fáceis”. Havia uma hostilidade às greves, cuja onda ascensional se prolongou desde 1978 até as vésperas da primeira eleição direta para presidente, e da qual Lula era, então, o símbolo maior. Observava se aumento linear da concordância com o uso de tropas para acabar com as greves conforme declinava a renda do entrevistado, indo de um mínimo de 8,6%, entre os que tinham renda familiar acima de vinte salários mínimos, a um máximo de 41,6% entre os que pertenciam a famílias cujo ingresso era de apenas dois salários mínimos (ver tabela 3 do Apêndice). Em outras palavras, ao contrário do esperado, os mais pobres demonstravam maior hostilidade às greves do que os mais ricos. 

Na época, assinalei que a resistência às greves e à candidatura Lula, manifestada por eleitores de baixíssima renda, estava associada, além do mais, a uma autolocalização intuitiva à direita do espectro ideológico (quadro 1).17 Não obstante, tratava-se de direita peculiar, uma vez que favorável à intervenção do Estado na economia, como se pode ver na tabela 4 do Apêndice. Como resolver a aparente contradição? Sugeri que os eleitores mais pobres buscariam a redução da desigualdade, da qual teriam consciência, por meio de intervenção direta do Estado, evitando movimentos sociais que pudessem desestabilizar a ordem. Para eleitores de menor renda, a clivagem entre esquerda e direita não estaria em ser contra a redução da desigualdade ou a favor desta, e sim em como diminuí-la. Identi!cada como opção que punha a ordem em risco, a esquerda era preterida em benefício de solução pelo alto, de uma autoridade constituída que pudesse proteger os mais pobres sem ameaça de instabilidade. Esse seria o sentido da adesão intuitiva à direita no espectro ideológico. Era comum, nas pesquisas, os eleitores de baixa escolaridade entenderem a direita como o que é “direito” ou como sinônimo de “governo”, a esquerda sendo o “errado” e a oposição. Se aceitarmos que tais 

associações expressam escolha pela ordem, o presumível erro de acepção !ca mitigado e torna inteligível o viés desfavorável a Lula.

Como vimos, o modelo de comportamento político descrito acima tem antecedentes. Marx, em O 18 Brumário,18 revela que a projeção de anseios numa !gura vinda de cima, que deriva da necessidade de ser constituído enquanto ator político desde o alto, é típica de classes ou frações de classe que têm di!culdades estruturais para se organizar. A natureza do vínculo esclarece por que o seu surgimento sempre causa surpresa. Como eles “não podem representar-se, antes têm que ser representados”, 19 aparecem na política de repente, sendo criados de cima para baixo , sem aviso prévio, sem a mobilização lenta (e barulhenta) que caracteriza a auto-organização autônoma das classes subalternas quando se dá nos formatos típicos do século xix, isto é, dos movimentos e partidos operários. 

O fato de Collor ter decepcionado a camada que o elegeu ao provocar a recessão de 1990-91, levando à perda de suporte que favoreceu o impedimento em 1992, não afetou os fundamentos do comportamento político que o pleito de 1989 revelara. Nas eleições presidenciais seguintes, de 1994 e 1998, o “conservadorismo popular”, acionado pelo medo da instabilidade, venceu Lula pela segunda e terceira oportunidade. Percebia-se, vagamente, um poder de veto das classes dominantes, o qual residia na capacidade de mobilizar o voto de baixíssima renda contra a esquerda. O que não se distinguia com nitidez eram as raízes ideológicas do mecanismo. 

Em 1993, a pesquisa Cultura Política voltou a investigar a localização dos eleitores no espectro ideológico, usando distribuição de dez pontos em lugar de sete. O resultado foi semelhante ao colhido quatro anos antes. A esquerda (posições de 1 a 4) reunia 27% das preferências, contra 45% da direita (posições de 7 a 10).20 Os levantamentos de opinião, aliás, indicam permanente supremacia conservadora na distribuição do eleitorado entre esquerda e direita, como se observa no quadro 1. 

quadro 1: 

posição no espectro ideológico (brasil), 1989-2006

esquerda centro direitaoutras respostas/ 

não sabe 

1989 (Datafolha, set.) 22% 19% 37% 22% 

1997 (F. Perseu Abramo, nov.) 19% 21% 34% 25% 

2000 (Datafolha, jun.) 27% 16% 37% 21% 

2002 (Criterium, out.) 26% 18% 39% 16% 

2003 (Datafolha, abr.) 26% 16% 41% 16% 

2006 (F. Perseu Abramo, mar.) 26% 20% 40% 14% 

2006 (Datafolha, ago.) 22% 17% 35% 26% 

2010 (Datafolha, maio) 20% 17% 37% 26% 

Fonte: Para Datafolha, relatório “Posição política, 20/21 de maio de 2010”, em <http://datafolha.folha.uol.com.br>, consultado em 3 abr. 2012, exceto para 2000, em <www1.folha.uol.com.br/folha/Brasil/ult96u3010.shtml>, consultado em 3 abr. 2012. Para Criterium e Fundação Perseu Abramo: Fundação Perseu Abramo, conforme o sítio <www2.fpa.org.br>, consultado em 18 set. 2009. Obs.: As posições na escala de 1 a 7 foram assim agrupadas: esquerda = 1 a 3; centro = 4; direita = 5 a 7. 

As pesquisas mostram, igualmente, que a tendência à direita cai com o aumento da renda, dando-se o contrário com a esquerda. Por isso, as derrotas de Lula em 1994 e 1998 podem ser entendidas, ao menos em parte, como reedições de 1989. Apesar de a estabilidade monetária ter se sobreposto, em 1994 e 1998, aos argumentos abertamente ideológicos utilizados por Collor (ameaça comunista) em 1989, o resultado foi que as duas campanhas de Fernando Henrique Cardoso mobilizaram os eleitores de menor renda contra a esquerda. Antonio Manuel Teixeira Mendes e Gustavo Venturi 

demonstraram que, na esteira do Plano Real, o melhor resultado de Lula em 1994 ocorreu entre os estudantes, entre os assalariados registrados com escolaridade secundária ou superior, e entre os funcionários públicos. Já os trabalhadores sem registro formal, portanto desvinculados da organização sindical, deram os melhores resultados a Fernando Henrique.21 Em 1998, a coligação governista procurou convencer, com sucesso, os eleitores de que Cardoso seria o melhor condutor do país em meio à crise !nanceira internacional que ameaçava a estabilidade conquistada quatro anos antes e

que Lula supostamente não conseguiria manter. 22 De acordo com Tarso Genro, “boa parte das massas excluídas simplesmente repercutiram esta estratégia manipuladora [...]”. Para Genro, em 1998 “pesou signi!cativamente, mais do que ocorreu com a eleição de Collor, uma grande parte da população marginalizada, lumpesinada ou meramente excluída do mundo da Lei e do Direito”. 23 Em decorrência, os argumentos da campanha de Lula de que Fernando Henrique tinha abaixado “a cabeça para os banqueiros e agiotas internacionais [...], aumentou os juros [...] e as empresas estão fechando e demitindo” 24 não atraíram mais do que os cerca de 30% de votos válidos que pareciam, então, constituir o teto do candidato, quando, na realidade, eram o teto da esquerda, socialmente limitada pela rejeição do subproletariado no extremo inferior de renda. 

Ainda em 2002, depois de unir-se a partido de centro-direita, anunciar candidato a vice de extração empresarial, assinar carta-compromisso com garantias ao capital e declarar-se o candidato da paz e do amor, Lula contava com menos intenção de voto entre os eleitores de renda mais baixa do que entre os de renda superior. Wendy Hunter e Timothy Power notaram que “no 

núcleo de apoio recebido por Lula nas suas quatro tentativas prévias de chegar à presidência, ocorridas entre 1989 e 2002, encontravam-se os eleitores com maior nível de escolaridade, concentrados principalmente nos estados mais urbanos e industriais do Sul e do Sudeste”. 25 Em suma, a base social de Lula e do pt expressava a esquerda numa sociedade cuja metade mais pobre pendia para a direita. 

Só depois de assumir o governo Lula obteve a adesão plena do segmento de classe que buscava desde 1989, deixando, porém, de contar com o apoio que sempre tivera na classe média. “Lula perdeu intenções e, provavelmente, votos entre alguns de seus eleitores ‘tradicionais’, ‘decepcionados’ com os 

‘escândalos’. Substituiu-os, porém, e compensou as perdas, com votos de ‘não eleitores’, pessoas que nunca haviam votado nele antes ”,26 a!rma Marcos Coimbra, diretor do Instituto Vox Populi (grifos meus). Entre a eleição de

2002, entendida como sendo a da demorada ascensão da esquerda em país de tradição conservadora, e a reeleição de Lula por outra base social e ideológica, em outubro de 2006, operou-se uma transformação decisiva e que se faz necessário entender. 

as bases materiais do voto 

Marcos Coimbra registra que “as primeiras pesquisas feitas logo após o começo do governo captaram uma nítida mudança nas atitudes dos eleitores de classe popular, apontando para o aumento de sua autoestima e da con!ança, de que o Brasil iria melhorar, agora que as políticas de governo passariam a ter outra intenção e !nalidades: um governo diferente, com gente diferente, fazendo coisas diferentes”. 27 Três anos depois da posse, quando outro pleito apontava no horizonte, tais “mudanças nas atitudes” se expressariam na forma de uma adesão que salvou Lula da morte política a que parecia condenado pela rejeição da classe média. 

Na análise de Coimbra, o “fundamento” da aprovação ao governo, que por sua vez levou ao voto em 2006, “foi a sensação de eleitores de renda baixa e média de que o seu poder de consumo aumentara, seja em produtos tradicionais (alimentos, material de construção), seja em novos (celulares, dvds, passagens aéreas)”. 28 Com efeito, a partir de setembro de 2003, com o lançamento do Programa Bolsa Família (pbf) inicia-se uma gradual melhora na condição de vida dos mais pobres. No princípio apenas uni!cação de programas de transferência de renda herdados da administração Fernando Henrique, o qual, por sua vez, copiara a fórmula de governos locais petistas, o pbf foi aos poucos convertido, pela quantidade de recursos a ele destinados, numa espécie de pré-renda mínima para as famílias que comprovassem situação de extrema necessidade. Em 2004, o programa recebeu verba 64% maior e, em 2005, quando explode o “mensalão”, teve um aumento de outros

26%, mais que duplicando em dois anos o número de famílias atendidas, de 3,6 milhões para 8,7 milhões. Entre 2003 e 2006, o Bolsa Família viu o seu orçamento multiplicado por treze, pulando de 570 milhões de reais para 7,5 bilhões de reais, e atendia a cerca de 11,4 milhões de famílias perto da eleição de 2006.29 

Diversos estudos encontraram indícios de que o pbf teve in"uência nos votos recebidos por Lula em 2006. Elaine Cristina Licio e colaboradores veri!caram, por meio de survey, “no que se refere à atitude dos bene!ciários do Programa”, que entre eles “a porcentagem de voto em Lula foi cerca de 

15% maior no primeiro e segundo turnos” em comparação com a obtida na média do eleitorado.30 Yan de Souza Carreirão associa a alta votação de Lula nas regiões Nordeste e Norte ao fato de o programa ter se concentrado naquelas áreas. Lula teve, no primeiro turno, por exemplo, cerca de 60% dos votos válidos do Nordeste e apenas 33% dos do Sul, sendo que o investimento d o pbf na região nordestina foi três vezes maior do que na sulista. 31 Em observação mais segmentada, Nicolau e Peixoto observaram que “Lula obteve percentualmente mais votos nos municípios que receberam mais recursos per capita do Bolsa Família”, 32 mostrando a repercussão do programa nos chamados grotões, tipicamente o interior do Norte/Nordeste, que sempre fora tradicional território do conservadorismo. Vale notar que, de acordo com Coimbra, entre os que votaram em Lula pela primeira vez em 2006, a maioria eram mulheres de renda baixa, “o público-alvo por excelência do Bolsa Família”, pois são as mães que recebem o benefício.33 

Soa consistente a a!rmação de que o pbf cumpriu um papel na segunda vitória de Lula. Porém, “a importância do Bolsa Família não deve ser subestimada e nem exagerada”, adverte Coimbra. “Sozinho não bastaria para explicar o resultado da eleição”, 34 diz o diretor do Vox Populi. Cláudio Djissei Shikida e colaboradores argumentam que raciocínios centrados no local de votação correm o risco de apenas mostrar a coincidência geográ!ca de dois fatores, a saber, a presença do pbf, dada a pobreza do lugar, e o voto em Lula,

mas não a relação causal entre ambas. O Bolsa Família foi logicamente destinado em maior proporção às regiões pobres e aos municípios de menor Índice de Desenvolvimento Humano (idh), pois lá se localizava a maior parte das famílias que a ele faziam jus. Mas o fato de a votação em Lula ter sido maior nessas regiões e municípios não implica que ela fosse causada pelo pbf ou só por ele. Fazendo uso de outro instrumental estatístico para compulsar as tendências municipais, Shikida e colaboradores concluem: “O pbf mostrou alguma evidência de impacto positivo na eleição, porém os resultados não se mostraram robustos. Mesmo se signi!cativo fosse, o valor do estimador seria bem menor do que o necessário para que essa fosse a variável-chave para a compreensão da eleição de Lula”.35 

Shikida e colaboradores sugerem que o controle dos preços, enquanto impulsionador do aumento do poder de compra entre as camadas pobres, pudesse ser mais explicativo da in"exão ocorrida em 2006. Chamam a atenção, por exemplo, para o fato de que, entre 2003 e 2006, a cesta básica subiu 8,5% e 10,4% em Porto Alegre e São Paulo, e em Recife e Fortaleza a 

variação foi de 4% e de –3%. Terá sido coincidência Lula ter perdido no Rio Grande do Sul e em São Paulo nos dois turnos, ao passo que no estado de Pernambuco recebeu 82% dos votos no segundo turno e, no Ceará, 75%?36 

Na mesma linha, mirando além do Bolsa Família, Hunter e Power lembram que o aumento real de 24,25% no salário mínimo durante o primeiro mandato teve um impacto mais abrangente do que o pbf. Ademais, o Bolsa Família e a elevação do salário mínimo, somados, dinamizaram as economias locais menos desenvolvidas, “que dependem, em grande medida, de comércio pequeno e gastos no varejo para a sua sobrevivência. Então, não é surpreendente que as vantagens da minoria [sic] tenham aumentado dramaticamente nos últimos três anos nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Tampouco causa surpresa que tanto o comparecimento como o apoio a Lula nessas duas regiões tenham crescido em 2006 comparado a 2002”.37

O primeiro aumento importante do salário mínimo, 8,2% reais, ocorreu em maio de 2005,38 e é razoável imaginar que a poderosa combinação Bolsa Família-salário mínimo tenha demorado alguns meses para produzir efeitos, o que ajuda a entender por que as pesquisas de intenção de voto registram crescente adesão dos mais pobres a partir do início de 2006. Mas, além do acréscimo de renda obtido pelos milhões de brasileiros que recebem um salário mínimo da Previdência Social,39 outra possibilidade aberta aos aposentados, às vezes principal fonte de recursos em pequenas comunidades, foi o uso do crédito consignado. O crédito consignado fez parte de uma série de iniciativas o!ciais a qual tinha por objetivo expandir o !nanciamento popular, que incluiu uma multiplicação expressiva do empréstimo à agricultura familiar (sobretudo no Nordeste), do microcrédito e da bancarização de pessoas de baixíssima renda. 

Criado em 2004, o recurso do crédito consignado permitiu aos bancos descontar empréstimos em parcelas mensais retiradas da folha de pagamento do assalariado ou do aposentado. A redução do risco decorrente da devolução garantida acarretou uma queda em quase treze pontos percentuais da taxa de juros desses empréstimos, e, em 2005, depois de crescer quase 80%, o crédito consignado punha em circulação dezenas de bilhões de reais, usados, em geral, para o consumo popular. No capítulo da assistência social, com a promulgação do Estatuto do Idoso, em janeiro de 2004, a idade mínima para receber o Benefício de Prestação Continuada (bpc), que paga um salário mínimo a idosos ou portadores de necessidades especiais cuja renda familiar per capita seja inferior a 1/4 de salário mínimo, caiu de 67 para 65 anos. Em 2006, 2,4 milhões de cidadãos recebiam o bpc. 

Além das medidas de alcance geral, que propiciaram a ativação de setores antes inexistentes na economia (por exemplo, clínicas dentárias para a baixa renda), uma série de programas focalizados, como o Luz para Todos (de eletri!cação rural), regularização das propriedades quilombolas, construção de cisternas no semiárido etc., favoreceu o setor de baixíssima renda.

Carreirão reproduz cruzamento realizado pelo Datafolha em junho de 2006 que mostra a in"uência de ser atendido por programa governamental sobre a disposição de reeleger o presidente. Os números revelam que a intenção de voto em Lula pulava de 39%, na média, para 62%, quando o entrevistado participava de algum programa federal.40 

Em resumo, o tripé formado pelo Bolsa Família, pelo salário mínimo e pela expansão do crédito, somado aos referidos programas especí!cos, e com o pano de fundo da diminuição de preços da cesta básica, resultou em diminuição da pobreza a partir de 2004, quando a economia voltou a crescer e o emprego a aumentar. É o que Marcelo Neri chama de “o Real do Lula”: “No 

biênio 1993-95 a proporção de pessoas abaixo da linha da miséria cai 18,47% e, no período 2003-05, a mesma cai 19,18%”.41 

Em particular no ano de 2005, quando eclodiu o escândalo do “mensalão”, ocorreu, segundo classi!cação de Waldir Quadros, a primeira redução signi!cativa da miséria desde o Plano Real,42 presumivelmente em consequência do conjunto de ações do governo Lula. Ou seja, durante a fase em que os atores políticos tinham a atenção voltada para as denúncias do “mensalão”, o governo concluía em silêncio o “Real do Lula”, que, 

diferentemente do original, beneficiava apenas a camada da sociedade que não sai nas revistas.43 No capítulo 3 vamos examinar de que maneira, durante o segundo mandato, a geração de empregos, decorrente da ativação do mercado interno, tornou-se o esteio da redução da pobreza, acelerando os efeitos obtidos no primeiro quadriênio lulista. 

fração de classe e ideologia 

Tomadas em conjunto, as iniciativas do primeiro mandato foram muito além de simples “ajuda” aos pobres. Sem falar nos programas especí!cos, o aumento do salário mínimo, a expansão do crédito popular, o aumento da

formalização do trabalho (o desemprego caiu de 10,5% em dezembro de 2002 para 8,3% em dezembro de 2005)44 e a transferência de renda pelo pbf, aliados à contenção de preços, sobretudo da cesta básica (e em alguns casos de"ação, como decorrência da desoneração !scal), constituem uma plataforma, no sentido de traçar uma direção política para os anseios de certa fração de classe. Não apenas porque objetivamente foram capazes de aumentar a capacidade de consumo de pessoas de baixa renda, como atesta o acesso de 29 milhões à “classe C” entre 2003 e 2009,45 mas porque sugerem um caminho a seguir: manutenção da estabilidade com expansão do mercado interno. Nesse sentido, colocam Lula à frente de um projeto , que é também compatível com aspectos de sua biogra!a, dando projeção ideológica aos ganhos materiais. 

Coimbra, orientador de diversas pesquisas quantitativas e qualitativas na época, chama a atenção não só para o fato de Lula ser o político de origem mais humilde a ter chegado ao topo do sistema, como para “a intensa campanha negativa que sofreu em suas tentativas anteriores”, tendo feito dele 

alguém que mexeu com a “autoimagem e o amor-próprio” do eleitorado popular.46 Convém lembrar que Lula é o primeiro presidente da República que sofreu a experiência da miséria, o que não é irrelevante, dada a sensibilidade que demonstrou, uma vez na Presidência, para a realidade dos miseráveis. É plausível a suspeita de Francisco de Oliveira de que a eleição de 

2006 comprove que Lula se elevou “à condição de condottiere e de mito”. 47 Oliveira acrescenta, entretanto, que esse é um tipo de liderança que “despolitiza a questão da pobreza e da desigualdade”, o que leva o autor a questionar a natureza da hegemonia que estaria surgindo e a lançar a sugestão de que ela agiria às avessas, isto é, para consolidar a “exploração desenfreada”, em lugar de minar o modelo superexplorador. À primeira vista, um lulismo despolitizante seria compatível com a “síndrome do Flamengo”, hipótese formulada por Fábio Wanderley Reis para explicar a ascensão do mdb nos anos 1970 e depois generalizada como visão estrutural da política brasileira.

Esse enquadramento sustenta que um eleitorado de baixa escolaridade terá necessariamente que orientar-se por “imagens toscas”, 48 não se devendo esperar que esteja informado das orientações substantivas adotadas pelos atores nem que se guie por elas. A “síndrome do Flamengo” faz o eleitor de baixa escolaridade escolher o partido mais ou menos como opta por um time de futebol. O mdb dos anos 1970 era o “partido do povo”, assim como o Flamengo era o “time do povo”. Da mesma forma que o voto popular no mdb não simbolizava necessariamente, para espanto do senso comum, rejeição ao governo militar, o voto em Lula não representaria nenhum tipo de opção ideológica, antes, pelo contrário, seria fruto de uma desideologização. As opções populares, regidas por mecanismos de identi!cação e acionadas por imagens difusas, nada expressariam de substantivo. 

Tal esquema foi relançado pela análise de Carreirão sobre o Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) de 2006, que, em dezembro daquele ano, detectou declínio do apoio à esquerda quando comparado ao Eseb 2002 (de 26% para 9%), bem como um salto do número de entrevistados que não sabia se posicionar na escala (de 23% em 2002 para 42% em 2006).49 O expressivo aumento dos que !cavam fora do espectro ideológico foi entendido por Carreirão como corroboração de “que após o primeiro mandato do presidente Lula houve na percepção dos eleitores brasileiros uma diluição das diferenças ideológicas entre os partidos (e lideranças políticas)”. 50 Conclusão semelhante à de Holzhacker e Balbachevsky, segundo as quais ocorrera “um esvaziamento da dimensão ideológica e do confronto de classes para explicar a vitória de Lula nas eleições de 2006”. 51 Nessa visão, é como se, depois do primeiro mandato, uma parte dos eleitores localizados à esquerda tivessem perdido o rumo, retirando à ideologia a in"uência que esta antes pudesse ter tido no processo eleitoral. 

Sem entrar em discussão metodológica, vale registrar que o resultado do Eseb 2006 é algo discrepante do encontrado pelas pesquisas resumidas no quadro 1. Embora se possa detectar nos levantamentos do Datafolha uma

redução da esquerda (de 26% em 2003 para 22% em 2006, segundo o quadro 1) e da direita (de 41% em 2003 para 35% em 2006), e um concomitante crescimento do número de entrevistados que não sabia se posicionar no espectro (de 16% para 26%) entre abril de 2003 e agosto de 2006, as oscilações são bem menores que as apontadas pelo Eseb (o fato desta pesquisa ter utilizado escala de 0 a 10, enquanto as do quadro 1 usam escala de 1 a 7, não seria suficiente para explicar o tamanho da diferença). 

A partir dos dados do Eseb, Carreirão argumenta que, se de um lado teria havido perda de substância ideológica, os “sentimentos partidários”, a saber, tanto a preferência quanto a rejeição de determinado partido, “mostraram-se associados à decisão do voto”. Pergunta-se ele, então, se estaríamos diante do que fora antevisto por Fábio Wanderley Reis e Mônica Mata Machado de Castro em 1992, quando, usando a noção de “síndrome do Flamengo”, previam, em artigo que analisava dados colhidos no começo da reestruturação partidária (1982), que decantada a nova con!guração de partidos se divisariam outra vez “as linhas básicas de clivagem”, com uma sigla adquirindo “a imagem de partido dos pobres — ou dos trabalhadores, desde que esta expressão seja tomada de maneira suficientemente difusa para tornar se equivalente àquela”. 52 Ou seja, não um partido de classe, mas do povo. Nesse script, o pt estaria agora substituindo o mdb dos anos 1970, tanto na falta de conteúdo quanto na capacidade de reter a lealdade popular. 

Hunter e Power, contudo, perceberam sinais de que, na eleição de 2006, o pt não teria acompanhado o ex-presidente em sua troca de base. Lula teria deixado um eleitorado tipicamente urbano e escolarizado por um francamente popular, mas o mesmo não teria ocorrido com o pt. “Ao comparar a tendência da base de apoio geográ!co do partido na Câmara dos Deputados com a de Lula, a incongruência é crescente. Enquanto Lula obteve seu desempenho mais notável nas regiões menos desenvolvidas (os chamados ‘grotões’, calcanhar de aquiles histórico do pt), o baluarte do partido continuou sendo as zonas mais urbanizadas e industriais do Brasil.” 53 Em

outras palavras, o candidato à reeleição foi mais sufragado quanto menor o idh do estado, mas a votação da bancada federal do partido manteve-se associada às unidades de maior idh.54 Lula teve particular sucesso no Nordeste e no Norte, ao passo que a votação do pt continuou relevante no Sudeste e no Sul. Por isso, Lula teria crescido entre o primeiro turno de 2002 e o de 2006, passando de 47% para 49% dos votos válidos, enquanto a bancada federal petista caiu, de 91 para 83 eleitos.55 

No capítulo 2 procurarei mostrar que, posteriormente a 2006, houve uma in"exão da base social do pt, diminuindo a distância inicial entre lulismo e petismo. Em resumo, argumentarei que o lulismo era uma força nova em 2006, a qual aderiu ao pt lentamente, mas acabou por tomar conta do partido, que, por seu turno, já vinha mudando de orientação programática desde 2002. O resultado é que o pt ofereceria, depois de 2006, um canal partidário sólido ao lulismo, afastando o risco populista de se projetar uma liderança carismática “solta”, sem partido. Entretanto, a desconexão temporária entre as 

bases do lulismo e as do petismo em 2006 foi o sinal de que havia entrado em cena uma força nova, constituída por Lula à frente de uma fração de classe antes caudatária dos partidos da ordem. Mais que um efeito geral de desideologização e despolitização, portanto, o que estava em curso era a emergência de outra orientação ideológica, que antes não se encontrava no tabuleiro político. O lulismo, ao executar o programa de combate à pobreza dentro da ordem, confeccionou via ideológica própria, com a união de bandeiras que não pareciam combinar. 

A meu ver a “continuidade do governo Lula com o governo fhc” na condução macroeconômica “baseada em três pilares: metas de in"ação, câmbio "utuante e superávit primário nas contas públicas” 56 foi uma decisão política e ideológica. A elevação do superávit primário para 4,25% do pib, a concessão de independência operacional ao bc, que teve à sua frente um deputado federal eleito pelo psdb com autonomia para determinar a taxa de

juros, e a inexistência de controle sobre a entrada e saída de capitais constituíram o meio encontrado para assegurar elemento vital na conquista do apoio dos mais pobres: a manutenção da ordem. 

O governo Lula afastou-se de aspectos do programa de esquerda adotado pelo pt até o !m de 2001, o qual criticava “a estabilidade de preços [...] alcançada com o sacrifício de outros objetivos relevantes, como o crescimento econômico”, a abolição das “restrições ao movimento de capitais” e a Lei de 

Responsabilidade Fiscal por tolher “elementos importantes de autonomia dos entes federados, engessando, em alguns casos, os investimentos em políticas sociais”.57 O objetivo foi impedir que uma reação do capital provocasse instabilidade econômica e atingisse os excluídos das relações econômicas formais. Para trabalhadores com carteira assinada e organização sindical, a luta de classes em regime democrático oferece alternativas de autodefesa em momentos de instabilidade. Porém, os que não podem lançar mão de instrumentos equivalentes, por não estarem organizados, seriam vulneráveis à propaganda oposicionista contra a “bagunça”. 

Os anos fhc legaram um pacto com a burguesia que envolvia juros altos, liberdade de movimento dos capitais e contenção do gasto público. Se é verdade que o desemprego resultante inviabilizou o sonho peessedebista de vinte anos seguidos no poder (a perene quimera do ciclo rooseveltiano, como se verá no capítulo 3), também é certo que o Real conquistara o eleitorado popular. A continuidade do “pacote fhc” foi a condição da burguesia para não haver guerra de classes e consequente risco de Lula ser visto como o presidente que destruiu o Real. 

Não tenho elementos para julgar se a correlação de forças permitia arriscar outra via, implicando algum grau de confronto com o capital. O fato é que o governo optou por conter a subida dos preços pelo caminho ortodoxo, aprofundando as receitas neoliberais, com a combinação de corte no gasto público e aumento de juros. Com efeito, a redução da demanda e a volta dos dólares que haviam fugido com medo da esquerda seguraram a in"ação, que

tinha alcançado a marca de 12,53% em 2002, caindo a 9,3% em 2003, 7,6% em 2004 e 5,7% em 2005. O presidente vocalizou, então, o discurso conservador de que o seu mandato não adotaria nenhum plano que pusesse em risco a estabilidade, preferindo administrar a economia com a “prudência de uma dona de casa”. Se, ao fazê-lo, estabelecia um hiato em relação ao passado do seu próprio partido, em troca criava uma ponte ideológica com os mais pobres. 

No entanto, se tivesse se limitado a conceder ao capital as garantias necessárias para manter a estabilidade, Lula só repetiria o relativo sucesso do primeiro mandato de fhc, o qual não logrou galvanizar o eleitorado mais pobre, apesar de emplacar o discurso de que “tudo é um processo”, equivalente tucano da “prudência da dona de casa”, garantindo a vitória de 

  1. O pulo do gato de Lula foi, sobre o pano de fundo da ortodoxia econômica, construir substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos, a qual, somada à manutenção da estabilidade, corresponde a nada mais nada menos que a realização de um completo programa de classe (ou fração de classe, para ser exato). Não o da classe trabalhadora organizada, cujo movimento iniciado no !nal da década de 1970 tinha por bandeira a “ruptura com o atual modelo econômico”, 58 mas o da fração de classe que Paul Singer chamou de “subproletariado” ao analisar a estrutura social do Brasil no começo dos anos 1980. 

Subproletários são aqueles que “oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais”. 59 Estão nessa categoria “empregados domésticos, assalariados de pequenos produtores diretos e trabalhadores destituídos das condições mínimas de participação na luta de classes”.60 Para encontrar uma maneira de quanti!cá-los, Singer usou informações sobre ocupação e renda fornecidas pelo Pnad de 1976, concluindo que seria razoável considerar subproletários os que tinham renda de até um salário mínimo per capita e metade dos que tinham renda de até

dois salários mínimos per capita.61 De acordo com esse critério, 63% do proletariado era, na realidade, composto de subproletários. 62 Em números absolutos, signi!cava dizer que, dos 29,5 milhões de proletários existentes no Brasil naquela época, 18,6 milhões faziam parte da fração subproletária da classe. Dos outros participantes da população economicamente ativa (pea), 8 milhões seriam pequeno-burgueses e 1,3 milhão burgueses.63 Em outras palavras, o subproletariado constituía 48% da pea. 

Apesar de não se dispor de uma atualização para o trabalho realizado por Paul Singer, a lógica permite supor que os processos de aumento da produtividade, desindustrialização, desemprego estrutural, subemprego, precarização do trabalho em geral e crescimento da pobreza que acompanharam a implantação do neoliberalismo nos anos 1990 tenham, no mínimo, mantido a proporção de subproletários na sociedade. Oliveira vai nessa direção em texto originalmente publicado em 2003, no qual a!rma que “o trabalho sem-formas inclui mais de 50% da força de trabalho, e o desemprego aberto saltou de 4% no começo dos anos 1990 para 8% em 2002, segundo a metodologia conservadora do ibge; entre o desemprego e o trabalho sem-formas, transita, entre o azar e a sorte, 60% da força de trabalho brasileira”.64 Cumpre lembrar que, em 1980, 44% das famílias no Brasil tinham renda de até dois salários mínimos65 e, um quarto de século depois, 47% do eleitorado estava na mesma faixa de renda.66 

Dado o seu tamanho, o subproletariado encontra-se no centro da equação eleitoral brasileira, e o coração do subproletariado está no Nordeste. Não somente porque na região empobrecida, que é a segunda mais populosa do país, habita boa parte dos subproletários, mas porque dela irradiam os subproletários que buscam oportunidade no centro capitalista, que é o Sudeste. Nucleado no Nordeste, onde Lula conta com elementos biográ!cos, mas estendendo-se para o conjunto do país, o lulismo, segundo indicam os dados eleitorais de 2006 e 2010, fincou raízes no subproletariado brasileiro.67

e agora, josé? 

A persistência do que poderíamos chamar de “conservadorismo popular” marca a distribuição das preferências ideológicas no Brasil pós redemocratização, com a direita reunindo quase sempre cerca de 50% mais eleitores do que a esquerda (quadro 1). Venturi mostra que a pendência para a direita do eleitorado de menor escolaridade (que está associada à renda), já observada em 1989, continuava presente quase duas décadas depois.68 Em 2006, enquanto os eleitores de escolaridade superior se dividiam por igual entre a esquerda (posições 1 e 2 = 31%), o centro (posições 3, 4 e 5 = 32%) e a direita (posições 6 e 6 = 31%), entre os que frequentaram até a quarta série do ensino fundamental a direita tinha 44% de preferência, quase o triplo de adesão que tinha a esquerda (16%) e o centro (15%).69 A conclusão de Venturi é que, “passadas mais de duas décadas de democracia, a construção de uma hegemonia político-cultural identificada como de esquerda não avançou”.70 

Em outras palavras, apesar do sucesso do pt e da cut, a esquerda não foi capaz de dar a direção ao subproletariado, fração de classe particularmente difícil de organizar. O subproletariado, a menos que atraído por propostas como a do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (mst), tende a ser politicamente constituído desde cima, como observou Marx a respeito dos camponeses da França em 1848. Atomizados pela sua inserção no sistema produtivo, ligada ao trabalho informal intermitente, com períodos de desemprego, necessitam de alguém que possa, desde o alto, receber e re"etir as suas aspirações dispersas. Na ausência de avanço da esquerda nessa seara, o primeiro mandato de Lula terminou por encontrar outra via de acesso ao subproletariado, amoldando-se a ele, mais que o modelando, e, ao mesmo tempo, fazendo dele uma base política autônoma. É isso que obriga a esquerda a se reposicionar. 

A emergência do lulismo tornou necessário, também, o reposicionamento

dos demais segmentos político-ideológicos. O discurso de Lula em defesa da estabilidade tirou a plataforma a partir da qual a direita mobilizava os mais pobres, sobrando-lhe apenas o recurso às denúncias de corrupção, assunto limitado à classe média. O aumento dos votos para Lula à direita, como se pode veri!car na comparação entre as tabelas 5 e 6 do Apêndice, restringe praticamente ao centro a base da oposição. Diante da di!culdade de ganhar eleições presidenciais só com a classe média, os oposicionistas precisam, de algum modo, se aproximar do lulismo, como se comprova pelo discurso da campanha presidencial do psdb em 2010 e pela criação do Partido Social Democrático (psd) em abril de 2011. 

Em 2002, embora os índices de Lula fossem maiores em todos os segmentos ideológicos, a situação permanecia como em 1989: o crescimento da intenção de voto no candidato do pt se dava conforme se ia da direita para a esquerda. Em situação desse tipo, o centro ainda tinha chances de recuperar, adiante, o eleitorado popular de direita e sonhar com a volta ao Planalto, sobretudo se a ordem viesse a estar ameaçada. Note-se que, dada a existência de uma “direita popular”, o centro é a posição mais associada à classe média conservadora no Brasil, e não a direita.71 Em 2006, como re"exo do deslocamento de classe, o voto em Lula aumenta em direção aos extremos, tanto esquerdo quanto direito, e cai ao centro (tabela 6 do Apêndice). O fato de Lula receber votos à esquerda e à direita de modo equivalente deixa em minoria a alternativa de classe média, organizada em torno de formulação centrista. 

Para a esquerda, isso impõe a tarefa de rede!nir o discurso à sombra de uma liderança popular no sentido pleno da palavra e ter que se defrontar com o retorno de imagens que marcaram a era Vargas. Está certo Oliveira quando a!rma que há “um fenômeno novo” em curso, que “não é nada parecido com qualquer das práticas de dominação exercidas ao longo da existência do Brasil”72 (embora não seja a “hegemonia às avessas”, e sim uma efetiva representação do subproletariado). Mas há sintomas de que, como sói acontecer na história, o recém-nascido busque no passado a linguagem para se

expressar, como aponta Marx nos parágrafos iniciais de O 18 Brumário. O popular que havia !cado fora de moda, seja pela retórica neoliberal, ao centro, seja pelo conteúdo de classe, à esquerda, está de volta. Diferentemente da experiência peessedebista, o “Real do Lula” veio acompanhado de mensagem que faz sentido para os mais pobres: a de que pela primeira vez o Estado brasileiro olha para eles, os deserdados, e, portanto, se popularizou. Eis o motivo de o ex-presidente insistir que “nunca na história deste país...”. Irritados, os supostos “formadores de opinião” não percebem que Lula não está se dirigindo a eles e martelam a tecla de que a história não começou com Lula, o que é verdade. Contudo, ouvido vários degraus abaixo, o bordão adquire sentido distinto: Nunca na história dos mais humildes o Estado olhou tanto para eles. 

O relativo desinteresse de Lula pelos “formadores de opinião” signi!ca que o deslocamento de classe tirou centralidade dos estratos médios, que eram importantes no alinhamento anterior. Nele, a esquerda organizava o proletariado e segmentos da “classe média”, notadamente servidores públicos, 

em torno de uma ideologia de esquerda, isto é, do discurso classista. O centro agregava as “classes médias” privadas ao redor da modernização do capitalismo, e a direita mobilizava o subproletariado contra a esquerda nos momentos cruciais. O con"ito político geral era !ltrado pelo debate entre os setores ilustrados. 

À medida que passou a ser sustentado pela camada subproletária, Lula obteve autonomia similar à que Luís Bonaparte adquiriu com a súbita adesão dos camponeses em 10 de dezembro de 1848.73 Com ela, Lula cria um ponto de fuga para a luta de classes, que passa, sobretudo no segundo mandato (ver capítulo 3), a ser arbitrada desde cima, ao sabor da correlação de forças. Se a reforma da Previdência, que tirava benefícios do servidor público e fazia parte do programa do capital, foi aprovada, a reforma trabalhista, que visava tirar direitos dos assalariados, foi adiada sine die, e assim por diante. 

Juiz acima das classes, o lulismo não precisa  afirmar que o povo alcançou o poder ou que os dominados “comandam a política”, como na formulação que Oliveira foi buscar na África do Sul pós-apartheid.74 Ao incorporar pontos de vista tanto conservadores, principalmente o de que a conquista da igualdade não requer um movimento de classe auto-organizado que rompa a ordem capitalista, quanto progressistas, a saber, o de que um Estado fortalecido tem o dever de proteger os mais pobres independentemente do desejo do capital, ele achou em símbolos dos anos 1950 a gramática necessária para a sua construção ideológica. A velha noção de que o con"ito entre um Estado popular e elites antipovo se sobrepõe a todos os demais cai como uma luva para um período em que a polaridade esquerda/direita foi empurrada para o fundo do palco. Enunciado por um nordestino saído das entranhas do subproletariado, o discurso popular ganha uma legitimidade que talvez não tenha tido na boca de estancieiros gaúchos. Não espanta que o debate sobre o populismo tenha ressurgido das camadas pré-sal anteriores a 1964, onde parecia destinado a dormir para sempre. 

  1. Versão modi!cada de artigo com o mesmo título publicado em Novos Estudos, n. 85, nov. 2009, pp. 83-102. 
  2. Lula teve 47% dos votos válidos no primeiro turno de 2002 e 49% na reeleição de 2006. Em números absolutos, Lula teve 52 788 428 de votos contra 33 366 430 de votos para José Serra, no segundo turno de 2002, e 58 295 042 de votos contra 37 543 178 de votos para Geraldo Alckmin, no segundo turno de 2006. 
  3. A bibliogra!a sobre o lulismo tem se multiplicado com rapidez. Cita-se aqui uma amostra. Ver, no campo petista, “O pt e o lulismo”, artigo assinado por Gilney Viana em 31 out. 2007, e “Duas agendas: na crise, de duas, uma”, de Renato Simões, 23 maio 2009, ambos no sítio <www.pt.org.br>, consultado em 25 ago. 2009. Em outra vertente, veri!car Merval Pereira, O lulismo no poder, e Rudá Ricci, Lulismo. Da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira. 
  4. Ver Francisco de Oliveira, “O avesso do avesso”, em F. de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), Hegemonia às avessas. Quando ia adiantada a redação deste livro, foi publicado por José de Souza Martins A política do Brasil, lúmpen e místico, que apresenta interpretação alternativa tanto à minha quanto à de Oliveira. Infelizmente não houve tempo para analisar os argumentos de Martins com o

devido cuidado, o que ficará para oportunidade próxima. 

  1. Roberto Amaral, “As eleições de 2006 e as massas: uma emergência frustrada?”, no sítio <www.psbnacional.org.br>, consultado em 25 ago. 2009, p. 6. 
  2. Veja, n. 1936, 21 dez. 2005, p. 55: “De agosto para cá, segundo o Ibope, Lula perdeu nove pontos percentuais entre aqueles que, até a eclosão da crise, eram seus eleitores mais !éis: brasileiros que ganham até um salário mínimo”. 
  3. Francisco de Oliveira, “O avesso do avesso”, em F. de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), Hegemonia às avessas, p. 21. No primeiro turno de 2006, que ocorreu no dia 1o de outubro, Lula teve 46 662 365 de votos e Geraldo Alckmin, 39 968 369, Heloísa Helena, 6 575 393, e Cristovam Buarque, 2 538 544. 8. Usando balizamentos de mídia, pode-se dizer que a fase aguda do “mensalão” se iniciou com a reportagem da Veja que começou a circular em 14 de maio de 2005 e terminou com a entrevista presidencial ao programa Roda Viva, da tv Cultura de São Paulo, em 7 de novembro do mesmo ano. 9. Folha de S.Paulo, 5 fev. 2006. 
  4. Ver resultados das pesquisas Datafolha nas edições da Folha de S.Paulo de 23 out. 2005 e 5 fev. 2006. 11. Agradeço ao Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Unicamp a cessão de dados do Ibope/2006 e a Gustavo Venturi a cessão de dados da Fundação Perseu Abramo. 12. Roberto Amaral, “As eleições de 2006 e as massas: uma emergência frustrada?”, no sítio <www.psbnacional.org.br>, consultado em 25 ago. 2009, p. 9. 
  5. Denilde O. Holzhacker e Elizabeth Balbachevsky, “Classe, ideologia e política: uma interpretação dos resultados das eleições de 2002 e 2006”, Opinião Pública, vol. 13, n. 2, nov. 2007, pp. 294-6. 14. André Singer, “Collor na periferia: a volta por cima do populismo?”, em B. Lamounier (org.), De Geisel a Collor, o balanço da transição, p. 138. 
  6. André Singer (org.), Sem medo de ser feliz, pp. 98-9. 
  7. Idem, p. 98. 
  8. Ver André Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro. As identi!cações ideológicas nas disputas presidenciais de 1989 e 1994. 
  9. Karl Marx, “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, em K. Marx, A revolução antes da revolução, p. 325. 19. Idem, ibidem. 
  10. André Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro, p. 182. 
  11. Antonio Manuel Teixeira Mendes e Gustavo Venturi, “Eleição presidencial: o Plano Real na sucessão de Itamar Franco”, Opinião Pública, vol. 2, n. 2, dez. 1994, pp. 43-5. 
  12. Ver Paul Singer, “No olho do furacão”, Teoria e Debate, n. 39, out./ dez. 1998, p. 22: “Muitos votaram pela reeleição porque Fernando Henrique Cardoso tinha apoio internacional, do qual Lula carecia”. 23. Tarso Genro, “Um confronto desigual e combinado”, Teoria e Debate, n. 39, out./ dez. 1998, p. 5. 24. Jorge Almeida, Marketing político, hegemonia e contra-hegemonia, p. 219. Note-se o tom enragé da campanha de 1998, abandonado em 2002. 
  13. Wendy Hunter e Timothy J. Power, “Recompensando Lula — Poder executivo, política social e as eleições brasileiras em 2006”, em C. R. Melo e M. A. Sáez (orgs.), A democracia brasileira, p. 334. 26. Marcos Coimbra, “Quatro razões para a vitória de Lula”, Cadernos Fórum Nacional (Instituto Nacional de Altos Estudos), n. 6, fev. 2007, p. 7. 
  14. Idem, ibidem, p. 13. 
  15. Idem, p. 11. 
  16. Sobre o crescimento do pbf, ver Jairo Nicolau e Vitor Peixoto, “As bases municipais da votação de

Lula em 2006”, Cadernos Fórum Nacional (Instituto Nacional de Altos Estudos), n. 6, fev. 2007, p. 20, e José Prata Araújo, Um retrato do Brasil, p. 155. 

  1. Elaine Cristina Licio, Lúcio R. Rennó e Henrique Carlos de O. de Castro, “Bolsa Família e voto na eleição presidencial de 2006: em busca do elo perdido”, Opinião Pública, vol. 15, n. 1, jun. 2009, p. 43. 31. Yan de Souza Carreirão, “Evolução das opiniões do eleitorado durante o governo Lula e as eleições presidenciais brasileiras de 2006”, em <www.waporcolonia.com>, 2007, consultado em 30 ago. 2009. 32. Jairo Nicolau e Vitor Peixoto, “As bases municipais da votação de Lula em 2006”, Cadernos Fórum Nacional (Instituto Nacional de Altos Estudos), n. 6, fev. 2007, p. 21. 
  2. Marcos Coimbra, “Quatro razões para a vitória de Lula”, Cadernos Fórum Nacional (Instituto Nacional de Altos Estudos), n. 6, fev. 2007, p. 7. 
  3. Idem, ibidem. 
  4. Cláudio Djissey Shikida, Leonardo Monteiro Monastério, Ari Francisco de Araújo Junior, André Carraro e Otávio Menezes Damé, “‘It’s the economy, companheiro!’: an empirical analysis of Lula’s re election”, em <http://works.bepress.com>, 2009, consultado em 30 ago. 2009. Texto original em inglês, tradução minha. 
  5. Idem, ibidem. 
  6. Wendy Hunter e Timothy J. Power, “Recompensando Lula — Poder executivo, política social e as eleições brasileiras em 2006”, em C. R. Melo e M. A. Sáez (orgs.), A democracia brasileira, p. 347. No original em inglês, há uma referência que está truncada na tradução para o português: “retail sales over 

the past three years have climbed most dramatically in the North and Northeast”. 38. Folha de S.Paulo, 1 mar. 2008, p. B1. 

  1. Em 2011, 18,6 milhões de bene!ciários recebiam salário mínimo, quase 10% da população. Folha de S.Paulo, 17 fev. 2011, p. A6. 
  2. Yan de Souza Carreirão, “Evolução das opiniões do eleitorado durante o governo Lula e as eleições presidenciais brasileiras de 2006”, em <www.waporcolonia.com>, 2007, consultado em 30 ago. 2009, p. 19. 
  3. Marcelo Neri, “Miséria, desigualdade e políticas de renda: o Real do Lula”, 2007, em <www3.fgv.br>, consultado em 30 ago. 2009. 
  4. Denilde O. Holzhacker e Elizabeth Balbachevsky, “Classe, ideologia e política: uma interpretação dos resultados das eleições de 2002 e 2006”, Opinião Pública, vol. 13, n. 2, nov. 2007, p. 289, reproduzem interessante estudo de Waldir Quadros, segundo o qual a massa de miseráveis teria caído de 38% em 2004 para 22% em 2005. 
  5. “Lá não tem moças douradas/ Expostas, andam nus/ Pelas quebradas teus exus/ Não tem turistas/ Não sai foto nas revistas”; Chico Buarque de Holanda, “Subúrbio”, em Carioca. 44. Dados do ibge citados por José Prata de Araújo, Um retrato do Brasil, p. 145. 45. Cálculo de Marcelo Neri, da fgv-rj. Para mais detalhes, ver capítulo 3. 
  6. Marcos Coimbra, “Quatro razões para a vitória de Lula”, Cadernos Fórum Nacional (Instituto Nacional de Altos Estudos), n. 6, fev. 2007, p. 12. 
  7. Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, piauí, n. 7, jan. 2007. 
  8. Fábio Wanderley Reis, “Participação política”, Valor Econômico, 7 jul. 2008. 49. Yan de Souza Carreirão, “Identi!cação ideológica, partidos e voto na eleição presidencial de 2006”, Opinião Pública, vol. 13, n. 2, nov. 2007. De acordo com Carreirão, o Eseb 2002 foi uma pesquisa

empreendida pelo Datauff e pelo Cesop/Unicamp, enquanto o Eseb 2006 foi levado adiante pelo Cesop/Unicamp e Ipsos. 

  1. Yan de Souza Carreirão, “Identi!cação ideológica, partidos e voto na eleição presidencial de 2006”, Opinião Pública, vol. 13, n. 2, nov. 2007, p. 332. 
  2. Denilde O. Holzhacker e Elizabeth Balbachevsky, “Classe, ideologia e política: uma interpretação dos resultados das eleições de 2002 e 2006”, Opinião Pública, vol. 13, n. 2, nov. 2007, p. 304. 52. Fábio Wanderley Reis e Mônica Mata Machado de Castro, “Regiões, classe e ideologia no processo eleitoral brasileiro”, Lua Nova, n. 26, 1992, p. 131. 
  3. Wendy Hunter e Timothy J. Power, “Recompensando Lula — Poder executivo, política social e as eleições brasileiras em 2006”, em C. R. Melo e M. A. Sáez (orgs.), A democracia brasileira, p. 338. 54. Idem, ibidem, p. 11. 
  4. Idem, p. 7. 
  5. José Prata Araújo, Um retrato do Brasil, p. 75. 
  6. Diretório Nacional do pt, Concepção e diretrizes do programa de governo do PT para o Brasil, mar. 2002, pp. 20-1 e 25. 
  7. Idem, p. 15. 
  8. Paul Singer, Dominação e desigualdade, p. 22. 
  9. Idem, ibidem, p. 83. 
  10. Idem, p. 86. 
  11. Idem, p. 129. 
  12. Idem, p. 108. 
  13. Francisco de Oliveira, “Política numa era de indeterminação: opacidade e encantamento”, em F. de Oliveira e C. Rizek (orgs.), A era da indeterminação, p. 34. Na arguição da minha tese, Oliveira reclamou da frouxidão do conceito de subproletariado para caracterizar uma fração de classe. Possivelmente esteja 

certo, pois se trata de uma primeira aproximação que aguarda novas pesquisas para melhor elaboração. 65. Paul Singer, Repartição da renda, p. 42. 

  1. “Segundo o Datafolha, os eleitores com renda de até dois salários mínimos representam 47% do total”, publicou a Folha de S.Paulo em 8 out. 2006. 
  2. Ver no capítulo 4 os dados referentes à eleição de 2010, que con!rmaram o enraizamento do lulismo no subproletariado, especialmente no Nordeste. 
  3. Gustavo Venturi, “Esquerda ou direita?”, Teoria e Debate, n. 75, jan./fev. 2008, p. 39. 69. Idem, ibidem. 
  4. Idem. 
  5. Ver André Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro, pp. 177-84. 
  6. Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, em F. de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), Hegemonia às avessas, p. 25. 
  7. Na Introdução mencionamos os pontos de O 18 Brumário, de Marx, que são aplicáveis ao lulismo. No capítulo 3 retomamos a ideia de solução arbitral, utilizada por Gramsci. 
  8. Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”, em F. de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), Hegemonia às avessas, p. 26.
  9. A segunda alma do Partido dos Trabalhadores1 

O conflito de duas almas num mesmo peito provavelmente não era fácil para nenhum de nós. Konrad Haenisch, sobre o Partido Social-Democrata da Alemanha ao votar os créditos de guerra, em agosto de 19142 

A transformação do Partido dos Trabalhadores ( pt) salta à vista daqueles que, por diferentes motivos, acompanham o percurso da agremiação fundada em fevereiro de 1980 no Colégio Sion,3 em São Paulo. Militantes percebem, dia a dia, que antigas práticas já não vigoram, cedendo o lugar a condutas inusitadas pelos critérios de antes. Jornalistas acostumados aos vaivéns da política brasileira com frequência assinalam o contraste entre o passado e o presente do partido. A literatura acadêmica se esforça por dar conta do sentido das mudanças que o pt atravessa. Entender os rumos petistas tornou se um dos assuntos prediletos do debate informado no Brasil desde que Lula chegou à Presidência da República. 

A di!culdade está em, como escreveu sobre outro tema Gildo Brandão, tratar-se de matéria rebelde.4 Quando parece !xar-se uma forma — por exemplo, a de grupo pragmático —, eis que surge a sombra da velha ideologia na diretriz para o programa presidencial de 2010. Quando se pensa divisar a passagem para o lado da ordem capitalista, um congresso partidário rea!rma, por unanimidade, a convicção socialista. Afinal, para onde vai o pt? 

No que concerne às pesquisas universitárias, podem-se distinguir quatro macro-orientações (sem atentar aos aspectos especí!cos que singularizam cada contribuição). A primeira aborda a crescente moderação do discurso.

Com tonalidades diversas, a depender da inclinação do autor, um conjunto de trabalhos nota que o pt não pretende mais revolucionar a sociedade. 5 Uma segunda vertente concentra-se na passagem de partido acentuadamente ideológico, com inserção eleitoral marcada por tal traço, para legenda com acento maximizador, isto é, disposta a qualquer tipo de aliança para conseguir votos.6 Em terceiro estão os que apontam para o enfraquecimento do vínculo com os movimentos sociais e uma paralela inserção estatal privilegiada. Ainda na linha de fechamento dos canais de participação, e olhando para a organização interna, indicam a transição de estrutura na qual a militância tinha peso — com a existência de núcleos por locais de trabalho e contribuição !nanceira dos membros — para uma em que a cúpula pro!ssionalizada tende a dar as cartas e o !nanciamento é externo. 7 Por !m, encontram-se os textos acadêmicos que salientam o câmbio na origem social dos simpatizantes, com intensa popularização das fontes de apoio.8 

Em que pese o interesse da ciência política no pt ter propiciado um painel rico e nuançado, captando variados matizes da saga petista, o que se completa por meio de produção que busca relacioná-la a elementos de natureza estrutural na sociedade brasileira,9 restam perguntas no ar, como a que ressoa num dos títulos acima mencionados: “O Partido dos Trabalhadores: ainda um partido de esquerda?”. Munido das devidas cautelas, este capítulo procura desenvolver um raciocínio em três etapas. Na primeira, conta-se a trajetória da agremiação vincada pela conexão entre classe e postura radical até a emergência, na campanha de 2002, da segunda alma, que, ao tornar-se dominante, arquivou o radicalismo de origem. A diferença desta análise, comparada a anteriores, reside sobretudo na periodização adotada e na caracterização do conteúdo envolvido no movimento de moderação. No segundo passo, relata-se o processo de popularização do pt que vê surgir, sociologicamente, uma espécie de “partido dos pobres”, conforme antecipou Fábio Wanderley Reis em entrevista publicada em outubro de 2004, 10 com características que lembram as do ptb anterior a 1964. Por !m, no terceiro

movimento, argumenta-se que, embora a segunda alma tenha sido amplamente reforçada pela popularização recém-analisada, o partido não se desfez da sua ala esquerda, sugerindo a hipótese de que os mandatos de Lula tenham representado síntese, ad hoc, das duas almas. 

as duas almas 

O espírito do Sion 

Vindo à luz na crista da onda democrática que varreu o Brasil da segunda metade dos anos 1970 até o !m dos 1980, o pt foi embalado pela aspiração de que a volta ao estado de direito representasse também um reinício do país, como se fosse possível começar do zero, proclamando uma verdadeira República em lugar da “falsa” promulgada em 1889. Sob o signo da “nova sociabilidade”11 forjada na oposição à ditadura, a proposta de fundação do partido, aprovada em Congresso dos Metalúrgicos (janeiro de 1979), falava em criar um partido “sem patrões”, que não fosse “eleitoreiro” e que 

organizasse e mobilizasse “os trabalhadores na luta por suas reivindicações e pela construção de uma sociedade justa, sem explorados e exploradores”, 12 expressão que significava, na época, uma referência cifrada a socialismo. 

O caráter radical do partido, que fazia desse traço elemento diferenciador numa cultura política tingida pela ambiguidade e pela conciliação de elites, tinha o sentido de negar as limitações das fases anteriores. Não poderei desenvolver aqui, mas descon!o que tal radicalismo esteja vinculado à tradição que Antonio Candido a!rmou ser “essencialmente um fenômeno ligado às classes médias”. 13 O importante é que não se entenderá o signi!cado da virada ocorrida em 2002 sem que se leve em conta a origem radical do pt. Conforme Angelo Panebianco, “poucos aspectos da !sionomia atual e das

tensões que se desenvolvem diante dos nossos olhos em tantas organizações parecem compreensíveis se não se retroceder à sua fase constitutiva”.14 Cabe recordar que o próprio golpe de 1964 abriu período de radicalização na história brasileira. Na área cultural, em particular, como mostra Roberto Schwarz,15 a derrubada do governo João Goulart ensejou inesperado crescimento da esquerda, o qual durou pelo menos até a edição do ai-5 (dezembro de 1968). Entre as teses em voga na esquerda da época, estava a de que na República de 1946 a tentativa de aliança do “povo” com a burguesia nacional teria prejudicado a nitidez da perspectiva de classe. Nessa visão, a concepção etapista difundida pela esquerda tradicional16 atrapalhou os subalternos, que !caram desorganizados diante da ofensiva da direita militar, apoiada pelos empresários, em 1964, deixando cair, como um castelo de cartas, os projetos de emancipação acalentados sob a proteção do populismo. Segundo Francisco Weffort, “na adesão das massas ao populismo tende necessariamente a obscurecer-se a divisão real da sociedade em classes com interesses sociais con"itivos e a estabelecer-se a ideia do povo (ou da Nação) entendido como uma comunidade de interesses solidários ”.17 A crítica ao populismo e ao Partido Comunista Brasileiro (pcb) passou a ser comum na intelectualidade de esquerda e acabou levada aos foros de fundação do pt (1980), quando a abertura trouxe de volta algo da efervescência universitária reprimida em 1968. Não por acaso, Weffort tornou-se, por muitos anos, secretário-geral do pt, o segundo homem, após Lula, na hierarquia do partido recém-fundado. 

A radicalização havia atingido também o meio católico, o qual desenvolveu, nos interstícios da repressão, extensa rede de organismos populares, as Comunidades Eclesiais de Base (cebs), ainda durante a vigência da ditadura. Iniciada a transição para a democracia, as cebs, imbuídas de uma perspectiva crítica ao capitalismo, tiveram destaque na conformação do pt. Foi crucial o papel exercido pelo cristianismo como fonte do sentimento radical que

caracterizou o espírito a que, não por acaso, estou chamando “do Sion”. O terceiro e mais decisivo front foram os sindicatos de trabalhadores que cresceram nos recessos da ditadura, representando, em parte, camada operária recente, advinda do “milagre” econômico, os quais propunham ruptura com o velho sindicalismo do período populista. Com o vigor típico dos gestos inaugurais, o “novo sindicalismo” pregava a liberdade sindical e a revogação da legislação varguista que, segundo se dizia, inspirada no fascismo italiano, atrelava o movimento operário ao Estado. 

A con"uência das três vertentes produziu rara associação de pensamento radical com amplos estratos da sociedade, como havia ocorrido na Europa um século antes, quando a extensa penetração de ideais socialistas marcou o !m do século xix e início do xx. A singularidade brasileira foi anotada por Perry Anderson, para quem o pt constituiu o único partido de trabalhadores de massas criado no planeta depois da Segunda Guerra Mundial.18 Cercado pela atmosfera eufórica da redemocratização, sobretudo a partir das greves que eclodiram em 1978 no abc paulista, o pt despertou a atenção do mundo. Compreende-se: quando em outras partes do planeta a reação neoliberal começava a desmontar o que fora construído no pós-guerra, no Brasil greves de massa pareciam civilizar o que Rosa Luxemburgo chamou de as “formas bárbaras de exploração capitalista”. Conviria, também, comparar a trajetória do pt com a do psoe, refundado em 1976. O programa espanhol falava em “partido de classe com caráter de massas, marxista e democrático”, rejeitava “qualquer caminho de acomodação ao capitalismo” e visava “a assunção do 

poder econômico e político, e a socialização dos meios de produção, distribuição e troca pela classe trabalhadora”. 19 Eduardo G. Noronha aponta a existência de vários fatores comuns às transições na Espanha e no Brasil: longo período autoritário, transição sob crise econômica e “economias complexas e recém-saídas de booms econômicos”.20 

O pt soube cultivar o terreno aberto pela classe trabalhadora. Da cultura participativa aos direitos cidadãos da Constituição de 1988, o partido cumpriu

papel histórico semelhante ao desempenhado por socialistas europeus, a saber, o de generalizar “dimensões fundamentais da igualdade”. 21 O discurso voltado “à organização de classe num sentido estrito” 22 obteve êxito entre os trabalhadores industriais, nas categorias em expansão do setor de serviços, como bancários e professores, entre os funcionários públicos e, até mesmo, junto ao universo agrário, tão duramente cerceado pelo coronelismo. A militância entusiasmada e a autenticidade das propostas !zeram do pt experiência aberta à participação. Fraco do prisma eleitoral, embora em crescimento permanente, extraía vigor de ser a voz de forças sociais vivas, enquanto estas tiveram energia para avançar. 

Falando por esse movimento social, o partido se propôs a combater, mesmo que isolado, os vícios e arcaísmos do patrimonialismo nacional. Em nome dele, recusou-se a sufragar Tancredo Neves no Colégio Eleitoral (1985), arcando com o ônus de fragmentar a frente antiditadura; decidiu não votar a favor da Constituição de 1988, apesar de seus aspectos altamente progressistas, em benefício de um projeto ainda mais avançado; recusou o apoio desinteressado do pmdb no segundo turno de 1989, o qual poderia ter signi!cado a vitória de Lula. À medida que expressava impulso social "orescente, o radicalismo do pt acabou por in"uenciar a redemocratização brasileira, deixando vestígios nos avanços daquela primavera. O reconhecimento de direitos fundamentais para a classe trabalhadora, como a “educação, a saúde, o trabalho” (artigo 6 o da Constituição), e de institutos de participação direta (plebiscito, referendo e iniciativa popular, previstos no artigo 14) é um dos resultados da década das greves (1978-88). O pt, nos anos 1980, contribuiu para que, como na Espanha e Portugal na década anterior, aspirações longamente represadas emergissem com potência su!ciente para deslocar o pêndulo da trajetória nacional. Segundo Noronha, “a conjunção de fatores favoráveis à eclosão de greves veri!cada no Brasil dos anos 1980 só encontra paralelo em países que passaram por transições políticas nas décadas

de 1970 e 1980”.23 

A derrota da Frente Brasil Popular, em 1989, inicia, entretanto, a restauração. Os governos seguintes buscaram emendar a Constituição recém promulgada, de modo a retirar os direitos aprovados e dar conteúdo neoliberal à democracia em construção. Com a derrubada das barreiras protecionistas, a recessão, o desemprego, a quebra das cadeias produtivas, Collor, e depois Fernando Henrique Cardoso, demoliram as fundações da onda democrática, e vasta parcela da classe trabalhadora “virou suco” (leia-se: caiu na “sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente”). 24 Em decorrência, os sindicatos recuaram. O número de greves despencou da média anual de 1102 entre 1985 e 1989 para 440 entre 1999 e 2002.25 Não obstante o impedimento de Collor em 1992, o avanço neoliberal prosseguiu através dos dois governos de Cardoso. Vencedor das eleições no primeiro turno em 1994 e 1998, e sustentado por ampla coalizão de centro-direita, fhc realizaria de maneira sólida e organizada o programa vitorioso em 1989: ajustar o país ao neoliberalismo, desfazendo as conquistas do período anterior. Nesse percurso complexo, aqui altamente resumido, dois pontos merecem ser destacados. A derrota da greve dos petroleiros em 1995, que partiu a espinha do combalido movimento sindical, e a elevação do desemprego, a partir de 1996, que teve nítida incidência sobre o declínio das greves.26 

No plano ideológico, a queda do Muro de Berlim, ainda que libertadora para a esquerda democrática, somou-se à reação interna, fazendo dos anos 1990 momento de avanço dos valores capitalistas. Reconhecendo que o quadro havia se transformado, o i Congresso do pt, em 1991, elabora estratégia que busca ampliar o espaço para a luta institucional, uma vez que o movimento social entrara em descenso. “O pt situa-se, hoje, num terreno mais vasto e complexo da luta de classes. Questões como a combinação da luta de massas com ação de governo [...] apresentam-se como tarefas imediatas”, 27 afirma o texto aprovado na ocasião. 

Mas o problema de fundo não podia ser resolvido por meio de resoluções

congressuais. Como enfrentar a maré montante da contraofensiva burguesa, quando as condições objetivas determinadas pela conjuntura internacional e nacional eram tão desfavoráveis? As di!culdades práticas da tarefa podem ser capturadas na análise das campanhas presidenciais de 1994 e 1998, realizada por Jorge Almeida.28 Na primeira oportunidade, diz Almeida, “o enfrentamento da questão do Plano Real foi marcado por uma sucessão de indecisões que acabavam sendo percebidas pela população”. Na segunda, transmitia-se “insegurança e incerteza, sobretudo em relação ao programa de fhc”. 

Privado da força motriz dos anos 1980, o pt procura a!ançar-se no plano institucional, o que implicava buscar alianças. O interessante é que o caráter crescentemente eleitoral do partido, que aparece em 1998 sob a forma de uma associação com o pdt que quase custou a extinção do pt no Rio de Janeiro, não foi acompanhado de revisão programática. O encontro nacional de 1998, por exemplo, propunha a “implementação de um programa radical de reformas” que contribuirá “para a refundação de uma perspectiva socialista no país”.29 Pode-se dizer, talvez, que os anos 1990 representaram a passagem de um partido de tipo ideológico, cujo anseio por votos se subordina ao caráter doutrinário da campanha, para um partido responsável, que busca maximizar votos, mas não altera o seu programa com vistas a isso.30 

Apesar de fazer concessões eleitorais, o pt continuou a ser um vetor de polarização. As diretrizes aprovadas em dezembro de 2001 a!rmavam: “A implementação do nosso programa de governo para o Brasil, de caráter democrático e popular, representará a ruptura com o atual modelo econômico, fundado na abertura e desregulação radicais da economia nacional e na consequente subordinação de sua dinâmica aos interesses e humores do capital !nanceiro globalizado” (grifo meu). Sem abrir mão da perspectiva de classe, o partido foi relevante para a maior iniciativa anticapitalista do início do século xxi: o Fórum Social Mundial (2001), não

por coincidência inaugurado na capital do Rio Grande do Sul, o estado mais importante governado pelo pt na época. É que entre o espírito de Porto Alegre31 e o do Sion havia continuidade evidente: ambos expressavam insatisfação com o mundo organizado e moldado pelo capital. 

O espírito do Anhembi 

Se existe um momento especí!co que simboliza a irrupção da segunda alma do pt, acredito ter sido o da divulgação da “Carta ao Povo Brasileiro”, em 22 de junho de 2002. É óbvio que houve longa gestação anterior, e seus !os podem ser rastreados, no mínimo, até a derrota de 1989, cuja história foge aos objetivos deste capítulo. Mas a silenciosa criatura veio à luz somente quando se iniciava a campanha de 2002 e, em nome da vitória, se impôs com facilidade surpreendente. Não ocorreu o vagaroso confronto que por anos protagonizaram as alas esquerda e direita da social-democracia alemã, até que, na data fatal de 4 de agosto de 1914, o espírito pragmático tomou conta da organização fundada sob os auspícios do internacionalismo proletário de Marx e Engels, aprovando os famigerados créditos para a participação da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. 

Quando o comitê de Lula decidiu comprometer-se com as exigências do capital, cujo pavor de suposto prejuízo a seus interesses com a previsível vitória da esquerda levava à instabilidade nos mercados !nanceiros, foi dado o sinal de que o velho radicalismo petista tinha sido, no mínimo, suspenso. Mas poucos foram os que entenderam o simbolismo do gesto. De início, pareceu apenas uma decisão de campanha, mesmo que um mês depois o Diretório

Nacional, reunido no centro de convenções do Anhembi, em São Paulo, tenha aprovado, contra o desejo de parcelas da esquerda partidária, as propostas antecipadas pela carta, transformando-as em orientações oficiais. 

No programa da Coligação Lula Presidente, divulgado no !nal de julho de 2002, há perceptível câmbio de tom em relação ao capital. Em lugar do confronto com os “humores do capital !nanceiro globalizado”, 32 que havia sido aprovado em dezembro de 2001, o documento a!rmava que “o Brasil não deve prescindir das empresas, da tecnologia e do capital estrangeiro”. Para dar 

garantias aos empresários, o texto assegurava que o futuro governo iria “preservar o superávit primário o quanto for necessário, de maneira a não permitir que ocorra um aumento da dívida interna em relação ao pib, o que poderia destruir a con!ança na capacidade do governo cumprir os seus compromissos”, seguindo pari passu o que fora anunciado na carta um mês antes.33 Compromete-se com a “responsabilidade !scal”, com a “estabilidade 

das contas públicas” e com “sólidos fundamentos macroeconômicos”. Sustenta que não vai “romper contratos nem revogar regras estabelecidas”. A!nal, “governos, empresários e trabalhadores terão de levar adiante uma grande mobilização nacional”, conclui.34 

A alma do Anhembi, expressa no programa “Lula 2002”, compromete-se com a estabilidade e atira as propostas de mudança radical ao esquecimento. Enquanto a alma do Sion, poucos meses antes, insistia na necessidade de “operar uma efetiva ruptura global com o modelo existente”, 35 a do Anhembi toma como suas as “conquistas” do período neoliberal: “a estabilidade e o controle das contas públicas e da in"ação são, como sempre foram, aspiração de todos os brasileiros”, afirma.36 

Considerado por alguns uma “tática” para facilitar a transição, o ideário ali exposto compunha, na realidade, um segundo sistema de crenças, que passaria a residir de!nitivamente dentro do peito do partido, lado a lado com o que o havia precedido. O compromisso com a “estabilidade monetária e responsabilidade !scal” volta a comparecer no programa presidencial quatro

anos depois, e “a preservação da estabilidade econômica” continuava como diretriz, agora para o governo Dilma Rousseff, oito anos mais tarde.37 A defesa da ordem viera para !car, e a direção decidida no Anhembi se tornaria programa permanente. O que estava em jogo, na verdade, era o abandono da postura anticapitalista que o partido adotara na fundação. 

Mudança análoga ocorreu no campo da política de alianças. Enquanto a alma do Sion primava pela ênfase ideológica, não aceitando juntar-se sequer a partidos de centro, a do Anhembi aprovou chapa composta por Lula e um grande empresário !liado ao Partido Liberal (pl), agremiação que levava no próprio nome a adesão ao credo oposto ao socialismo. Surgido por ocasião da Constituinte para defender princípios liberais, o pl foi considerado, por cientistas políticos que estudaram o assunto, como pertencendo ao bloco da direita “com base em seu posicionamento relativo nas votações nominais ocorridas durante a vigência do atual regime constitucional”. 38 Embora a justi!cativa para a aliança com o pl fosse a presença de José Alencar, note-se, lateralmente, que o vínculo evangélico do pl (rebatizado de Partido da República — pr — ao fundir-se com o direitista Prona em outubro de 2006) abria canais com setores religiosos que sempre haviam sido hostis ao radicalismo petista. 

O fato de que o empresário Alencar tenha mais tarde se revelado, sob diversos aspectos, homem notável, além de crítico (muitas vezes à esquerda da alma do Anhembi) da política econômica do governo Lula, em particular dos altos juros, não altera a circunstância que a escolha do pl como parceiro em 2002 mostrava que o critério ideológico para as alianças estava sendo enviado para as calendas gregas. Sinal dos tempos: diferentemente do que ocorrera em 1998, quando a aliança com um partido de centro-esquerda (pdt) obrigou o Diretório Nacional (dn) petista a intervir na seção carioca, a ligação com a direita em 2002 passou quase ilesa. 

É que também a opção por aliança com o agrupamento da direita foi

tomada, de início, como recurso ocasional, em engano que obscureceu por um tempo relativamente prolongado a verdadeira natureza do espírito do Anhembi. À medida que o governo Lula expandiu o raio de acordos a outros partidos de direita, como o Partido Trabalhista Brasileiro (ptb) e o Partido Progressista (pp), deixou de haver quaisquer restrições aos arranjos eleitorais. Na eleição municipal de 2008, a decisão do Diretório Nacional de coibir alianças com o psdb foi, na prática, ignorada em Belo Horizonte, sem maiores problemas. Em 2010, a oposição interna, em nome dos velhos princípios, ao acordo com a seção maranhense do pmdb, dominada pela família Sarney, foi derrotada na direção do partido. 

Ao estabelecer pontes com a direita sem levar em consideração as razões ideológicas, a alma do Anhembi demonstrou uma disposição pragmática que estava no extremo oposto do antigo purismo do Sion. Não era uma "exibilização, e sim um verdadeiro mergulho no pragmatismo tradicional brasileiro, cuja recusa fora antes bandeira do partido. Sob a aparência de ajustes voltados para o momento eleitoral de 2002, uma revolução estava em curso, deixando atônita boa parte da esquerda petista sintonizada com o espírito do Sion.39 Mas em dezembro de 2003, quando foram expulsos os poucos parlamentares que haviam se rebelado contra as diretrizes “renovadas”, a maior parte da esquerda permaneceu no pt. Os rebeldes tinham se oposto, em particular, à proposta de reforma da Previdência Social encaminhada pelo governo Lula ao Congresso Nacional. Ao encampar posturas antes sustentadas pelo psdb, o projeto atendia a reclamos do capital, que via no excesso de gastos previdenciários ameaças à estabilidade das contas públicas. A decisão de excluir do partido os opositores do projeto previdenciário evidenciava que o espírito do Anhembi não aceitaria oposição interna ao governo Lula. 

Mais tarde, em 2005, o pragmatismo venceu outra batalha signi!cativa. A crise do chamado “mensalão” reabrira o tema do !nanciamento